20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

14. A IGREJA E O IMPÉRIO

“As nações se embraveceram; os reinos se moveram; ele levantou a sua voz e a terra se derreteu.” (Salmo 46.6)

Jesus disse aos seus discípulos, pouco antes do ano 30 AD: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O verso bíblico citado se insere num contexto em que perguntaram a Jesus se era lícito pagar impostos a Roma. Na resposta, Cristo deixa claro que há uma nítida diferença entre o reino dos homens e o Reino de Deus, cada um com seu governante máximo, que deve receber o que lhe é devido.
Com a prática da vivência cristã por parte da Igreja, lentamente há um deslocamento de autoridade no Reino Celestial (na terra representado pela Igreja) de Deus para o Papa, líder máximo criado pelos homens a partir de uma interpretação errônea do que Cristo havia dito a seus discípulos numa outra ocasião. Assim, após a perseguição, a Igreja começou lentamente a colocar um “vigário de Cristo”, um substituto do Salvador, presente sobre a terra, na pessoa do Bispo de Roma e de toda a hierarquia eclesiástica criada. O verso citado no início, que opunha César a Deus, passou a opor César ao Papa. Foi aí que surgiu o “cesaropapismo”.
A partir do Édito de Milão, em 313, além de reconhecer o cristianismo como religião legal e com liberdade de culto, Constantino assumiu uma postura magisterial no âmbito social, cultural e religioso do império. Dessa forma, ele se opôs a qualquer discordância teológica no cristianismo, religião que assumira como forma de unificar politicamente o Império. Nessa linha político-religiosa, o imperador convocou o I Concílio de Niceia, em 325, para solucionar a questão do arianismo. Em um processo que se acentuou nas décadas seguintes, o cristianismo se tornou a religião oficial do império em 380, no governo de Teodósio. O fim do Império Romano do Ocidente em 476 deteve um processo de controle da Igreja pelo Estado no Ocidente, o qual vinha se fortalecendo com o tempo. 
Cesaropapismo (substantivo composto formado de dois outros, “César” e “Papa”) foi um sistema de relações entre a Igreja e o Estado em que ao chefe de Estado (César) cabia a competência de regular a doutrina, a disciplina e a organização da sociedade cristã, exercendo poderes tradicionalmente reservados à suprema autoridade religiosa (Papa), unificando as funções imperiais e pontifícias em sua pessoa. Daí decorre o traço característico do cesaropapismo, que é a subordinação da Igreja ao Estado. A ideologia do cesaropapismo assenta-se na ideia de a política imperial querer usurpar a autoridade conciliar e o poder papal de decisão sobre a Igreja. Em sua história milenar, o Império Romano do Oriente acentuou e concretizou o cesaropapismo ao extremo. O imperador fez valer seu poder sobre a Igreja emanando normas, sancionando decretos dos concílios ecumênicos, convocando os tribunais eclesiásticos e determinando sua competência, cuidando da exata aplicação das leis canônicas, controlando a correta administração dos bens da Igreja e nomeando os titulares dos ofícios eclesiásticos. No Ocidente, a Igreja tinha a obrigação de informar ao imperador ou a seu representante na Itália o nome do papa eleito.
Carlos Magno, ao se constituir como líder do Império Carolíngio, no século VIII, assumiu uma relação muito estreita com a Igreja Católica. Primeiro lhe deu o território do centro da Itália, o Patrimônio de São Pedro, em 754, que assegurou ao papa o poder temporal direto sobre a região. O papa Leão III, em 25 de dezembro de 800, conferiu o título de Imperador a Carlos Magno. O Imperador reviveu um sistema de relações entre o Estado e a Igreja, no qual ele assumiu o poder legislativo, jurídico e administrativo sobre o território pontifício; Carlos Magno reivindicou, antes mesmo de ser coroado imperador, o poder dogmático; em carta ao papa Leão III em 796, ele afirmou: "Quero não só defender com as armas a Igreja de seus inimigos externos, mas também fortificá-la em seu interior através do maior conhecimento da doutrina católica". Carlos Magno nomeou, com raras exceções, todos os bispos e abades de seu reino, exigindo inclusive a participação pessoal deles nas guerras.  
Em 962, o rei germânico Oto I foi coroado imperador do Sacro Império Romano-Germânico e novamente teve início no Ocidente um período de intervenção do Estado na Igreja, com o intuito de favorecer o poder do imperador. Os imperadores germânicos então nomeavam bispos e abades, que prestavam juramento de fidelidade na condição de vassalos. Desregramento do clero, que provocou um grande movimento de reforma eclesiástica, foi a consequência. Na época, o imperador nomeou e depôs vários papas na busca de apoio político.
O Sacro Império Romano foi uma tentativa de reviver o Império Romano do Ocidente, cuja estrutura política e legal sucumbiu a partir das invasões do século V, substituída por reinos independentes governados por chefes germânicos. O Sacro Império Romano-Germânico (em alemão Heiliges Römisches Reich) constituiu-se na união de territórios da Europa Central durante a Idade Média, durante toda a Idade Moderna e no início da Idade Contemporânea, sob a autoridade do Sacro Imperador Romano-Germânico. Embora Carlos Magno seja considerado o primeiro Imperador do Sacro Império, em 800, a linha contínua de imperadores começou apenas com Otto I em 962. O último imperador do I Sacro Império foi Francisco II, que abdicou e dissolveu o império em 1806, durante as Guerras Napoleônicas. Foi principalmente nesse longo período que os poderes de César e do Papa estiveram em litígio, com o predomínio ora de um, ora do outro. 
O predomínio do poder imperial sobre o eclesiástico sofreu uma inversão principalmente nos tempos de Inocêncio III, dado o poder acumulado em suas mãos na sua época. Segundo ele, o papa era superior ao rei em virtude da autoridade recebida de Deus, e por isso tinha o poder de excomungar os reis e de depô-los. Inocêncio dizia que Deus tinha posto o sol e a lua para iluminar o dia e a noite. O sol representava a autoridade pontifícia, enquanto a lua era a autoridade imperial. “Por isso, a lua recebe a sua luz do sol e é, portanto, inferior ao sol, tanto na grandeza como no calor, tanto na sua posição como nos seus efeitos. Do mesmo modo o poder régio deriva a sua dignidade da autoridade pontifícia e quanto menos se submete a ela, tanto menor luz recebe dela. Mas quanto mais lhe se submete, tanto mais aumenta o seu fulgor.” No final do século XII, era o Papa quem nomeava os reis. 
O I Império dissolveu-se em 1806, durante as Guerras Napoleônicas, tendo sido revitalizado como II Império entre 1871 e 1918, com a participação do chanceler Otto von Bismarck, que projetou sob regime monárquico um moderno estado nacional, de governo central com soberania sobre todo o seu território. O espirito bélico de dominação acabou por envolver a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, da qual o país saiu derrotado, em meio a uma grave crise econômica, social e institucional, com perda significativa de territórios e de todo o seu império colonial. O III Império (ou III Reich em alemão), talvez o de mais triste memória, levou ao nazismo de Adolf Hitler, eleito Chanceler da Alemanha em 30 de janeiro de 1933. O resultado de tudo isso foi a II Guerra Mundial, de 1939 a 1945, evento que deixou milhões de mortos, muita destruição, massacre de judeus e muita tristeza no mundo todo. Resumindo a história de maneira sarcástica, para o filosofo francês Voltaire, em 1756, o Sacro Império Romano parecia uma "aglomeração", que não era "nem sagrada, nem romana, nem um império". 
Duas Guerras Mundiais no século XX foram consequência de algo iniciado na Idade Média, quando os líderes cristãos resolveram juntar o político ao religioso, o temporal ao eterno, o material ao espiritual, contrariando o que Cristo deixou como orientação quanto ao assunto: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. O mesmo Senhor havia alertado seus discípulos, dizendo “meu Reino não é deste mundo”, mostrando que não era um líder político que tivesse vindo restabelecer o reino a Israel. Ensinava ele que todos aqueles que viessem a lidar no Reino de Deus neste mundo, na Igreja por ele edificada, deveriam saber separar as coisas devidamente. Infelizmente, ao longo da história do Cristianismo, os cristãos não têm sabido discernir entre os absolutos de Deus e os relativos do homem. Por estas e por outras coisas, muitos cristãos fugiram para a vida monástica, assunto a ser abordado no próximo fascículo.

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