20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

10. A IGREJA E OS BÁRBAROS

“Eu sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes.”  (Romanos 1.14)

Bárbaro significa pessoa tida como não-civilizada. A palavra é frequentemente utilizada para se referir a um membro de uma determinada nação ou grupo étnico, geralmente uma sociedade tribal, vista por integrantes de uma civilização urbana e organizada como inferiores. Os gregos costumavam dizer: "Quem não é grego é um bárbaro", expressão talvez lembrada por Paulo e utilizada pelos romanos para se referir a todos os povos que não faziam parte do Império. Particularmente foram chamados de bárbaros os povos de origem germânica que, nas migrações dos povos primitivos, invadiram o Império Romano do Ocidente, causando sua queda no século V.

 Os bárbaros, tidos como não-civilizados,  brutos, cruéis, belicosos e insensíveis, começaram a invadir o Império Romano, que se considerava como o que existia na época de mais civilizado e evoluído. Quem eram os bárbaros? O termo era bastante abrangente, referindo-se a diferentes tribos, na parte oriental e na ocidental. De modo geral, os bárbaros se organizavam em clãs, desconheciam uma instituição estatal como a romana, suas leis eram baseadas na tradição, sendo transmitidas oralmente; além disso, dedicavam-se ao pastoreio e à agricultura. Eram povos guerreiros, o que garantiu a eles a fama de violentos e cruéis, apesar de os romanos utilizarem os mesmos expedientes contra os povos que dominavam.

Nas invasões bárbaras do Império Romano, houve dois momentos distintos. Inicialmente os bárbaros penetraram pacificamente nos territórios romanos, recebendo os invasores pequenas áreas de terra nas regiões de fronteira. Com o passar do tempo, os costumes bárbaros foram se mesclando com os costumes romanos. Um segundo momento foi mais lento e definitivo, sem benefícios dos ganhos de terra e envolvendo um contingente de pessoas bem maior, com a invasão de diferentes levas de bárbaros. Foram muitos os povos bárbaros que invadiram a porção ocidental do Império, podendo ser citados Alanos, Anglos, Alamanos ou Suábios, Burgúndios, Cartagineses, Celtas, Francos, Frísios, Germanos, Godos (Ostrogodos, Visigodos), Hérulos, Hunos, Lombardos, Lusitanos, Rúgios, Saxões, Suevos, Tribos Teutônicas, Vândalos, Vikings, além de outros. Vamos considerar três ocasiões especiais de invasão bárbara. O primeiro aconteceu em 410, com o sitio, tomada e pilhagem de Roma por Alarico e seus visigodos. Muitos ficaram estupefatos com a queda da Cidade Eterna. Na distante Palestina, Jerônimo escreveu sobre o evento: "Minha voz está presa na garganta e as lágrimas me interrompem ao ditar estas palavras. A cidade que dominou o universo foi conquistada". Agostinho, teólogo e filósofo cristão, viveu esse período conturbado. Nascido em 354 na cidade de Tagaste, hoje Numídia, região da África, Agostinho, como estudante, viveu libertinamente, mantendo relações com várias mulheres, das quais resultou um filho, Adeodato. Uma obra de Cícero despertou nele o desejo por uma vida menos sensual e mais comprometida com a busca da verdade. Seguiu então o Maniqueísmo, que rejeitava o judaísmo e o Antigo Testamento, porém aceitava Cristo entre seus precursores. Não encontrou, porém, no movimento a verdade definitiva. Ouvindo sermões de Ambrósio e tendo acesso à literatura paulina, especialmente a carta aos Romanos, Agostinho tomaria outros caminhos bem distantes dos quais vivia antes e se tornaria “uma nova criatura”. Agostinho fundou em sua terra natal uma comunidade monástica e foi ordenado sacerdote em Hipona, assumindo posteriormente o cargo de bispo da cidade. Tendo ido posteriormente para Roma, Agostinho conviveu com a cidade “devastada” pelos bárbaros. O visigodo Alarico saqueou Roma, iniciando a desestruturação do Império Romano do Ocidente. Como podia Agostinho entender que a capital do antigo império, soberana do mundo e “cidade eterna”, tivesse sofrido uma destruição tão violenta? O mundo todo parecia tremer em suas bases e os pagãos acusavam o novo Deus cristão do Império como impotente e fracassado.  Agostinho escreveu: “A queda de Roma abalou o Império. Todos os cristãos e não cristãos acusavam o cristianismo: o deus do amor e da caridade não serve para institucionalizar, isto é, organizar e defender uma civilização e uma cultura”.

Em A Cidade de Deus, Agostinho divide a sociedade em dois “partidos” opostos: A Cidade de Deus e a Cidade Terrena. Segundo suas palavras, “... ambas as Cidades enlaçam-se e confundem-se no século até que o juízo final as separe.” O texto pode ser considerado uma obra teológica e filosófica, na qual Agostinho tenta convencer os cristãos e os pagãos que a destruição do Império Romano fazia parte da vontade divina. Durante todo o contexto do livro, é possível prever o desfecho das duas cidades que divergem e se entrelaçam em si mesmas: a Babilônia terrena era o lugar do cativeiro, do presídio e do afastamento de Deus; a Jerusalém celestial era o lugar da vida em abundância, da libertação. Escrita entre 413 a 426, a obra é a interpretação do mundo romano da época à luz da fé cristã.

O segundo momento de invasão envolve, Leão foi sagrado bispo de Roma em 440. Na qualidade de supremo pastor da cidade, Leão foi bastante enérgico para a manutenção da disciplina na sua época, e muitos de seus sermões e decretos tinham esse objetivo. Um perigo iminente surgiu no horizonte: Átila, rei dos hunos, que a si mesmo chamava de “Flagelo de Deus”, destruía tudo nas Gálias e voltava-se para o norte da Itália. O imperador, o senado e o povo só viram uma saída para conjurar a situação: que Leão fosse parlamentar com o invasor. Para Leão, sua missão era clara: salvar o mundo cristão, e também sua pátria e seu povo. Mas a tarefa não era nada fácil, e o sucesso imprevisível. Após o encontro com o líder eclesiástico, Átila prometeu viver em paz com o império, mediante o recebimento de um tributo anual, fez cessar imediatamente as hostilidades e, pouco depois, fiel à sua palavra, retornou aos Alpes. A tradição da igreja católica mantém um relato segundo o qual o que fez o bárbaro recuar foi não somente a presença Leão, mas uma outra figura toda de branco com uma espada na mão ao seu lado, que teria sido vista por Átila; a tradição católica atribui a figura em questão a Pedro, havendo também aqueles que afirmam que Paulo também estava presente.

O Sumo Pontífice ordenou preces públicas para agradecer a Deus tamanho benefício, mas o povo, volúvel, logo se esqueceu do magnífico favor e se entregou às diversões, como jogos no circo, teatros e deboches. Apesar da pregação contra a decadência popular, sua advertência não foi atendida. Por isso, três anos depois, Leão já não foi tão bem sucedido com o vândalo Genserico. O que o Pontífice pôde obter dele foi que não queimasse a cidade e respeitasse a vida de seus cidadãos. E que estaria a salvo tudo o que se pudesse recolher nas três grandes basílicas de Roma. Mas Roma foi saqueada durante 15 dias, após os quais muitos ficaram na miséria. O Pontífice procurou socorrer os necessitados e reconstruir a cidade, declarando outra vez que esses males se deviam à impiedade do povo. Leão faleceu em 461. Bruce Shelley, em sua História da Igreja Cristã, considera Leão I como o primeiro papa católico romano, atuante numa época em que o poder eclesiástico começava a se confundir com o poder imperial.

O terceiro e definitivo momento de invasão aconteceu em 476, com os bárbaros hérulos de Odoacro, tendo havido a deposição do último imperador romano, Rômulo Augusto, que já era de descendência germânica. Odoacro reconheceu como único imperador romano o imperador do Oriente, sediado em Constantinopla. Durante as invasões anteriores, a população já havia abandonado as cidades, instalando-se na zona rural, em busca de proteção, desintegrando assim a conformação urbana que havia no Império Romano. Com a invasão, os bárbaros constituíram-se ainda inúmeros reinos no território antes controlado pelos romanos, iniciando o processo de configuração política que iria caracterizar a sociedade medieval.

Quais foram as causas da decadência do Império Romano, que resultaram nas invasões bárbaras do século V? Muitos foram os elementos que para isso contribuíram, podendo ser lembrados a ruína econômica de Roma, suas guerras civis, além da intensificação das rapinas de uma soldadesca cada vez mais barbarizada; podem ser citadas ainda as pragas de pestes que provocaram despovoação das cidades, as desordens internas, as revoltas sociais, a bandidagem terrestre e marítima, as lutas pelo poder entre exércitos bárbaros e representantes civis romanos, além da destruição das classes privilegiadas e o crescente domínio do campo sobre a cidade. As diversas tentativas de destruição de Roma atestam o enfraquecimento do poder imperial e o fortalecimento do poder político da Igreja, atuando tanto na área da administração política como na área espiritual. Isto se tornaria mais e mais evidente, à medida que os séculos se sucedessem.

E o que aconteceu com o relacionamento “igreja e povos bárbaros” a partir da miscigenação que começou a ocorrer a partir daquele momento? Vindo de culturas e religiões tão diferentes e variadas, qual foi a reação que os bárbaros tiveram diante do Cristianismo? Muitas foram as histórias, mas vamos conhecer algumas delas no próximo fascículo.

 
 
 

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