20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

INTRODUÇÃO

A Igreja, de Atos até nós: este é o panorama que queremos cobrir em cinquenta fascículos, revisitando a história da Igreja Cristã desde o seu início no primeiro século – conforme narra o livro de Atos dos Apóstolos – e chegando até o século XXI. São praticamente vinte séculos, quase dois mil anos, desde que tudo começou. Grandes foram os desafios, inevitáveis as mudanças, mutáveis as circunstâncias que influenciaram a trajetória da Igreja, até que chegássemos aos nossos dias. Para organizar todos os acontecimentos e selecioná-los em apenas cinquenta textos curtos que abrangessem toda a história, foram necessárias muitas leituras, exaustiva pesquisa e seleção de temas que formassem um todo coerente dentro aquilo que pretendíamos atingir. 
E a que resultado queremos chegar? Cremos, como cristão, que este trabalho valerá a pena se o resultado final for edificante para a vida da Igreja como um todo e para a participação individual de cada um na construção do Reino de Deus neste mundo. Grandes serão as dificuldades, já que uma aparente unidade conseguida na Igreja Primitiva iniciada em Jerusalém se perdeu ao longo do tempo. A unidade da Igreja foi uma das últimas preocupações de Jesus Cristo ao deixar este mundo, demonstrada, por exemplo, em sua oração sacerdotal por seus seguidores, tanto os seus contemporâneos no primeiro século, quanto aqueles que viessem a se juntar ao grupo ao longo do tempo. Ele sabia que, face a culturas, povos, tempos e circunstâncias diferentes e tão diversas como aquelas que sobrevieram à Igreja em sua trajetória, que unidade seria uma das características mais difíceis de serem mantidas pelo seu Corpo.
Earl Cairns ensina que a Igreja se desenvolve em dois níveis: existe o Organismo e a organização. O organismo é eterno, perfeito, santo, divino, imutável, absoluto, pois foi edificado pelo próprio Senhor Jesus quando esteve de forma corpórea neste mundo; foi sobre o Organismo que Jesus afirmou que mesmo as portas do inferno não prevaleceriam contra ele. A Organização da Igreja se refere às congregações locais, que são finitas, imperfeitas, humanas, mutáveis, relativas, pois formadas por pecadores como nós enquanto estamos neste mundo. Cremos que, enquanto as organizações da Igreja se dividem numa multiplicidade de tipos diferentes, há unidade no Organismo; é uma unidade através da diversidade: unidade da fé cristã ao longo dos séculos, apesar da diversidade de grupos, dogmas, formas enfim de ser igreja. A centralidade da Igreja na pessoa de Cristo é o segredo para isto; enquanto a Igreja for Cristocêntrica, esta unidade na diversidade será mantida, independentemente de nomes, etnias, culturas e todas as outras diferenças que surgirem. 
Como Organismo, somos o Corpo de Cristo, a Esposa que aguarda a volta do Noivo, e, enquanto o dia de seu retorno não chega, temos que fazer a nossa parte, vivendo e compartilhando a mensagem que ele mesmo ensinou a seus apóstolos, discípulos e seguidores durante o tempo em que aqui viveu como Filho do Homem. É com esta convicção que devemos viver, e também na esperança de seu retorno, repetindo a oração final do Apocalipse conforme João a expressou: “Maranata! Ora vem, Senhor Jesus!”  

APRESENTAÇÃO

A Igreja Cristã começou por volta dos anos 30 do primeiro século, enfrentou cerca de trezentos anos de oposições internas e externas, na forma de perseguições e heresias; cessada a perseguição, passou por um processo de oficialização, tornando-se a religião estatal do Império Romano. A Igreja assistiu à divisão do Império em Oriente e Ocidente, à queda do Império Romano do Ocidente, à romanização dos bárbaros germânicos e à reorganização do governo imperial, na forma de Sacro Império Romano-Germânico. Internamente, a Igreja continuou a enfrentar heresias e a conviver com heterodoxias, ou seja, crenças e procedimentos que não eram praticados pela Igreja Primitiva, na forma de Catolicismo Romano.
Com a ação de reformadores, antes e depois de Lutero, buscou-se restabelecer o caminho trilhado pela Igreja Neotestamentária. Muitos foram os eventos ocorridos em cinco séculos desde a Reforma Protestante e hoje convivemos com uma Igreja Cristã com múltiplas divisões internas e interpretações da Bíblia. 
Em 31/10/2017, o mundo cristão se lembrará dos 500 anos desde que Lutero divulgou suas 95 teses, a gota d'água que fez transbordar o copo da Reforma Protestante. O que ocorreu antes, durante aqueles dias e depois é o assunto de 50 textos que estão aqui publicados. Que eles sirvam para informação, edificação e desafio para a vida de todos os cristãos que deles tomarem conhecimento.

RICARDO SIMÕES ROCHA

50. A IGREJA E A PÓS-MODERNIDADE

"Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?” (Jeremias 17:9)

Ovídio, poeta romano do início da Era Cristã, disse: “Os tempos estão mudando e nós mudamos com eles.” Com os tempos, mudam-se também as eras históricas, cada uma com seu centro unificador filosófico, organizando o entendimento do mundo. Na Idade Média, existiu um teocentrismo eclesiástico com o Catolicismo. No início da Modernidade, com o Protestantismo, o centro passou a ser o homem (humanismo) e depois a razão humana (racionalismo). Na Pós-Modernidade, não há centro definido, tudo é excêntrico. O início do Pós-Modernismo é considerado por alguns a partir do final da II Guerra Mundial, por outros com a queda da União Soviética e do Muro de Berlim, além de outras possibilidades.
As mudanças pelas quais passou o mundo ocidental entre os séculos XIV e XVI foram paulatinas, levando o Ocidente a deixar o medievalismo e a entrar na Modernidade. Agostinho de Hipona (354-430) escreveu na Antiguidade: "Cogito ergo sum" (Penso, portanto sou). Na Idade Média, a teologia cristã afirmava que o mundo era um todo ordenado por Deus. Na Modernidade, inspirado em Agostinho, René Descartes (1596-1650) afirmou: “Penso, logo existo”. Criaram-se assim as bases da ciência moderna, definindo-se o modo como o ser humano encara o pensamento e a existência. Opondo o teocentrismo medieval ao uso da razão como fonte do saber, criou-se o método cartesiano do bem pensar. O raciocínio humano desenvolveu a ciência, permitindo-lhe desenvolver o avanço tecnológico atual. Partindo-se do Racionalismo, surgiu o Iluminismo, estimulando o questionamento, a investigação e a experiência como formas de conhecimento da natureza, sociedade, política, economia e do ser humano. Opondo-se ao absolutismo, criticavam os iluministas os privilégios da nobreza e do clero católico, embora não duvidassem da existência de Deus. Defendiam a liberdade na política, na economia e na escolha religiosa e queriam a igualdade de todos perante a lei. Partindo da ideia da educação para todos e buscando reunir todo o conhecimento até então existente, foi criada a “enciclopédia”, tendo a primeira obra 35 volumes impressos na segunda metade do século XVIII
A Revolução Francesa de 1789 rompeu os domínios político, social, institucional, legal e religioso, provocando a expulsão dos monges de seus mosteiros, com perda de arquivos, bibliotecas e centros de vida intelectual erudita. O Catolicismo foi perseguido e a França foi deixando Deus de lado, fato mantido até a sociedade francesa de hoje.
Com o avanço promovido pela razão e pela ciência humana, criou-se no mundo ocidental uma expectativa de que todo aquele processo conduziria a sociedade e o mundo moderno a uma melhor qualidade de vida, com paz, progresso contínuo e bem-estar para todos. O conhecimento era considerado como preciso, objetivo e bom. 
Com a chegada do século XX, o advento de duas guerras mundiais com milhões de mortos, o holocausto e outros genocídios, a Grande Depressão na economia mundial, a descoberta da energia da bomba atômica, além de outros conflitos, acabaram por destruir o sonho utópico da Modernidade, trazendo a frustração e a falta de perspectiva que ocasionaram a Pós-Modernidade. No dizer de Stanley Grenz, “no mundo pós-moderno, as pessoas não estão mais convencidas de que o conhecimento é inerentemente bom. Ao evitar o mito Iluminista do progresso inevitável, o pós-modernismo substituiu o otimismo do último século por um pessimismo corrosivo”. 
Na Pós-Modernidade, não se confia mais cegamente na razão e na bondade do conhecimento. A verdade absoluta foi substituída por verdades relativas; numa nova cultura mundial pluralista, a diversidade cultural requer um novo estilo de conduta, o ecletismo. Um centro único e respeitado de autoridade, julgando ideias, opiniões e opções de estilo de vida não mais existe: é a heterotopia pós-moderna, em oposição à utopia modernista. Na sociedade atual, a vida é como um filme, onde verdade e ficção se confundem. A televisão parece ser o mais eficiente veículo para disseminação do espírito pós-moderno; a tela – do cinema, da televisão, do computador, do tablet, do celular – demonstra o contraste tradicional pós-moderno entre o eu subjetivo e o mundo objetivo. Criou-se a necessidade de comunidade, com a proliferação das redes sociais, por exemplo. Globalização e urbanização mostram a necessidade pós-moderna da inclusão, que gera dificuldades com a variedade de etnias, culturas, gostos e crenças existentes nos grandes centros urbanos. A geração mais nova tende a ser mais mística e espiritualizada que a anterior – há poucas décadas, expressões de fé demonstradas por artistas ou jogadores eram raras, sendo corriqueiras no mundo atual. Na pós-modernidade, como a verdade é relativa, a convivência entre os antônimos parece mais aceitável: certo ou errado, verdadeiro ou falso, bem ou mal, céu ou inferno, Deus ou o Diabo são opostos que dependem da verdade de cada um. No aspecto espiritual, é preciso desenvolver tolerância religiosa, resignação perante diferenças ideológicas ou opiniões distintas num pluralismo religioso. Sem um conteúdo cognitivo, a religião torna-se apenas uma experiência mística subjetiva.
Com a ênfase pós-moderna, a Igreja precisa inserir o homem em sua comunidade local, vivenciando o evangelho em relacionamentos integrais, autênticos e terapêuticos. Inclusivismo, relativismo, conformismo com o conceito de "politicamente correto", ou seja, a aceitação daquilo que a sociedade local considera como correto, são alguns dos adversários, por vezes sutis, que a pós-modernidade tem levantado contra a fé cristã. Existem quatro perguntas filosóficas fundamentais para a vida: “1. Quem sou eu? 2. Por que estou aqui? 3. O que está errado no mundo? 4. Como podemos consertar o que está errado?" Cada era histórica tem, de certo modo, lidado com essas dúvidas e encontrado suas respostas para as mesmas. Independentemente disso, é preciso que tenhamos em mente a cosmovisão cristã do problema. A Bíblia nos autoriza a dizer que eu sou um pecador e estou aqui neste mundo por obra e graça de Deus; o que está errado com o mundo é o pecado, que afastou o homem de Deus, mas podemos consertar o que está errado mostrando ao mundo o caminho que o próprio Deus preparou para a reparação do erro: o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, que nos purifica de todo o pecado. A pregação do evangelho como caminho individual de reconciliação com Deus tem feito sentido em qualquer época histórica vivida e continuará fazendo na Pós-Modernidade. O evangelho continua sendo a resposta para os anseios da geração atual. Nossa missão como discípulos de Cristo e veículos do Espírito Santo consiste em viver e expressar as boas novas eternas de salvação, de modo que a nova geração possa compreendê-las. Na Modernidade, os evangélicos do século XX empenharam-se com muita energia na tarefa de demonstrar a credibilidade da fé cristã a uma cultura que glorificava a razão e deificava a ciência. Tal tarefa precisa continuar perante o mundo com as diferenças pós-modernas do século XXI.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

49. A IGREJA E AS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

“Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou. (João 17.14-16)

Cristo pediu ao Pai que não tirasse os seus discípulos de um mundo ao qual não pertenciam, mas que os livrasse do mal. Jesus era judeu, assim como seus primeiros seguidores. A Igreja nasceu, pois, dentro de uma cultura judaica, numa província dominada pelo Império Romano. Ao se expandir para fora da Judeia, a Igreja começou a conviver com outras culturas, inicialmente com a greco-romana e, com o passar do tempo, com outras situações culturais diferentes. Como pregar o evangelho, nascido à sombra do judaísmo, para pessoas de costumes tão diferentes?
Roland Bainton, professor de história eclesiástica de Yale, afirmou: “Quando o cristianismo se leva a sério, ele deve renunciar ao mundo ou então dominá-lo”. A primeira atitude foi característica do cristianismo medieval; através da vida nos mosteiros, o catolicismo incentivava o cristão a renunciar ao mundo. A segunda opção dominou o pensamento dos reformadores. A verdadeira tarefa da vida cristã está nas cidades, nos mercados e nas câmaras de comércio do mundo secular e não no isolamento da cela monástica. A transição do monastério para o mercado, no entanto, foi perigosa, pois o cristão passou a conviver diretamente com a cultura que o circundava. Na sua interação com o mundo da cultura, a Igreja tanto influenciou quanto foi influenciada. Cultura constitui um significado complexo, que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano, não somente em família, mas também por fazer parte de uma sociedade mais ampla da qual é membro. 
Em 1951, Richard Niebuhr escreveu “Cristo e a Cultura”, no qual procura discutir a relação entre Cristianismo e civilização. Cristo é perfeito e sem pecado; se a cultura é criada pelo homem, desde que os seres humanos são imperfeitos e pecadores, como pode Cristo se misturar com a imperfeição? Baseados nas posições iniciais de Niebuhr e em Ronaldo Lidório, no seu artigo “Crescendo em fé e missão” (revista Cristianismo Hoje), vamos tentar entender o problema.
Segundo o autor, o evangelho é inicialmente cultural, pois foi revelado à humanidade, em seu tempo e contexto, inserido em uma cultura própria. A posição supracultural do evangelho de Cristo permite que, estando acima da cultura, o evangelho se manifeste, defina e explique a cultura humana. O evangelho pode também ser encarado como intercultural, ao possibilitar que pessoas de diferentes culturas sejam um só corpo em Cristo Jesus. Torna-se ele multicultural, já que é destinado a todos os povos, línguas, tribos e nações. Assume o aspecto transcultural porque deve ser transmitido de uma cultura a outra. Finalmente, ele é contracultural, ao confrontar o homem em sua própria cultura, vida e história. As posições podem ser encontradas não todas ao mesmo tempo, mas em determinados momentos específicos da história da Igreja, como a contracultural, por exemplo, ao observarmos o monasticismo católico, a posição dos anabatistas iniciais e de certos movimentos pietistas.
O tema é amplo e tem múltiplos aspectos a serem considerados. Por isso, vamos focalizá-lo principalmente em relação à arte e seu envolvimento com a Igreja Cristã. Arquitetura, escultura, pintura, literatura, música, teatro e cinema têm estado presentes na atividade da Igreja, em situações que variam desde uma aceitação e uso plenos até momentos de aversão total a elas. Veja-se, por exemplo, a posição de Martinho Lutero sobre a música: “Depois da palavra de Deus, a música merece o mais alto louvor. Não acredito que todas as artes devam ser removidas nem proibidas por causa do evangelho, como sugerem alguns fanáticos. Ao contrário, veria com alegria todas as artes, especialmente a música, no culto a ele que as deu e as criou”. No entanto, seu contemporâneo Zuinglio baniu-a totalmente do culto, mandando até construir uma parede em uma catedral para isolar o órgão da visão dos devotos.
A pintura no Catolicismo trazia à vida didaticamente o drama da liturgia, suplementando-o pelas imagens. Com o aparecimento do protestantismo, houve uma ruptura com o passado: iconoclastia, destruição de relíquias e altares, vestes clericais rasgadas e outras manifestações acabaram com muitas obras artísticas.
Sobre a arte da palavra, afirmou o escritor puritano Richard Baxter: “A literatura promove ativamente uma cultura de mentiras, que enfeitiça e corrompe de forma perigosa a mente de jovens e de pessoas vazias”. Áreas como poesia, romance, teatro e outras eram inicialmente repudiadas pelos protestantes, por lidarem com ficção, imaginação, representações da realidade em lugar da verdade do evangelho. Basta lembrar que a palavra grega “hipócrita” era o nome dado aos atores teatrais que escondiam sua verdadeira face atrás de máscaras no palco. As barreiras aos poucos foram caindo, diante de obras como o romance “O Peregrino” de John Bunyan (1572-1631), a poesia de John Milton, bem como os hinos de Bach e outros grandes artistas cristãos. 
Além da arte, existe o esporte, com seu relacionamento com o protestantismo começando no século XIX. No início, o esporte foi encarado como desperdício de tempo, de esforço e uma distração das coisas mais serias. No século XIX, quando a atividade começou a ser vista como aliada da saúde, seu potencial como ferramenta de testemunho cristão e formação social foi revisto. O “cristianismo muscular” começou a tomar corpo quando se constatou que o número de mulheres na igreja era muito maior do que o de homens. Usando-se esportes como o críquete, muito popular na Inglaterra, a igreja procurou atrair homens para suas fileiras. A Associação Cristã de Moços tem ajudado a difundir a ideia “corpo saudável com fé saudável”, indicando o esporte como meio de enriquecimento físico e espiritual. 
Arte, esporte, ciências sociais, o papel social da mulher, a importância da família e tantos outros temas poderiam ser aqui discutidos, num assunto que, como dissemos, é amplo e multifacetado. Hoje já se nota uma preocupação maior da Igreja para estudar e entender o seu relacionamento com as culturas, refletido, por exemplo, na preparação dos missionários para abordarem culturas ainda não alcançadas pelo evangelho. No passado, muitos erros existiram nesse campo, ao entenderem os promotores de missões que o evangelho fazia parte da cultura europeia ocidental, por exemplo, e com ela deveria ser pregado, numa superposição de uma cultura à outra. 
Vivemos em um mundo ao qual não pertencemos espiritualmente. Sobre o assunto, Calvino afirmou: “Temos que atravessar este mundo como se ele fosse um país estrangeiro, relacionando-nos superficialmente com todas as coisas terrenas e recusando-nos a permitir que nosso coração se apegue a elas”. Não é fácil relacionar-se superficialmente com as coisas da terra, vivendo hoje cercado de tanto materialismo, consumismo e busca da felicidade. No entanto, convivemos com a cultura ao vivenciarmos o evangelho, e é preciso entender como podemos lidar com o problema.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

48. A IGREJA E O ECUMENISMO

“Mas aquele que perseverar até ao fim será salvo. E este evangelho do Reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as gentes, e então virá o fim”. (Mateus 24.13-14)


Ecumenismo é um movimento que busca a união de todas as igrejas cristãs, em um apelo à unidade de todos os povos contido na mensagem do Evangelho. Ecumênico, vindo de radical grego, significa "mundial, geral ou universal", tal como o termo católico, que vem do latim. O movimento ecumênico surgiu oficialmente a partir da Conferência Missionária Mundial, realizada em 1910 em Edimburgo, na Escócia, sendo sua principal expressão atual o Conselho Mundial de Igrejas, criado na Holanda em 1948.
Na oração sacerdotal, Jesus orou por seus discípulos ao Pai, “para que sejam um, assim como nós”. Estendeu ainda sua oração a nós, no século XXI, quando disse: “Eu não rogo somente por estes, mas também por aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim; para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste”. Jesus desejava unidade para os seus seguidores e sua Igreja.
Coesão, solidariedade e amor fraternal eram marcas iniciais da igreja em Jerusalém, ideais esses que logo foram atenuados por diferentes razões, como o surgimentos de divisões entre judaizantes e helenistas ainda em Jerusalém, entre cristãos latinos e gregos e, mais tarde, entre católicos e protestantes, no século XVI, além de muitas outras cisões ao longo dos séculos.
O movimento de missões mundiais empreendido pelas igrejas protestantes europeias e norte-americanas a partir do século XIX alertou os missionários, trabalhando em diferentes partes do mundo, para a dificuldade de testemunhar do evangelho de Cristo em meio a tantas divisões e competições. Tempos depois, surgiu a reunião de Edimburgo. No entanto, diferenças entre tradicionalismo e liberalismo, por exemplo, tornaram o processo bastante problemático. Aos poucos, questionamentos teológicos mais amplos foram surgindo, tornando o debate mais aberto e radical. O caráter único de Cristo como Salvador e da fé nele como condição indispensável para a salvação foi questionado, entendendo alguns que as outras religiões mundiais também são caminhos válidos para Deus e negando o evangelho de Cristo como o único caminho. O ecumenismo passou a ter uma amplitude ainda maior que a inicial de união cristã.
As missões passaram a ser vistas sob novos ângulos, relativizando-se a importância da Bíblia, de Cristo e do evangelho e entendendo-se a missão da igreja não apenas como reconciliação com Deus, mas de libertação social e política de pessoas e grupos marginalizados das situações de sofrimento e opressão em que vivem. Surgem daí as questões de libertação nacional, de luta das minorias étnicas, raciais ou religiosas, além do envolvimento de movimentos como o feminismo e o homossexualismo.
Visando à união das igrejas cristãs, o ecumenismo tem-se tornado motivo de discórdia e separação, com igrejas que a ele se associam defendendo uma sociedade mais permissiva. Apesar dos desvios do movimento ecumênico majoritário, no entanto, o ideal da cooperação e do testemunho conjunto deve continuar sendo objeto dos interesses e esforços dos cristãos de boa vontade. Todavia, é importante que isso seja feito sem se abrir mão das convicções centrais que caracterizam o cristianismo bíblico.
Desde a Reforma Protestante iniciada em 1517, houve tentativas de reaproximação entre o catolicismo e seus descendentes mais diretos, como anglicanos, luteranos e ortodoxos. Lutero, Calvino e outros reformadores iniciais entendiam a separação do cristianismo como necessária naquele momento, mas criam que o catolicismo poderia ser convencido a discutir divergências, anulando a cisão. No entanto, com o Concílio de Trento, Roma fechou as portas para que tal acontecesse. No século XX, houve novas tentativas de reaproximação, com reuniões e grupos criados, culminando com o Concilio Mundial de Igrejas, com sede em Amsterdã na Holanda, em 1948. O Vaticano adotou a ideia e a encíclica "Ad Petri Cathedram", do papa João XXIII (1958–1963) convidava todos os "irmãos separados" a unirem-se à "Igreja Mãe". O Concílio Ecumênico Vaticano II, em seu decreto "Unitatis Redintegratio" no capítulo intitulado "Os princípios Católicos do Ecumenismo", reforçou esse desejo.
No portal virtual "solascriptura", o texto “Os perigos do ecumenismo”, escrito pelo pastor Waldir Ferro, afirma: “Uma igreja acostumada a prevalecer, não pela razão, mas pela imposição de uma religião estatal, desde o tempo de Constantino em 313, nunca pôde ver com bons olhos a perda de influência e de poder”. Segundo o ex-padre Anibal Pereira Reis em seus livros “O Ecumenismo” e “O Ecumenismo e os Batistas”, a mudança de atitude do catolicismo romano para com as demais igrejas, numa tentantiva de reaproximação, data da tendência de o estado laico assumir as escolas públicas, bem como do desenvolvimento da mídia, (jornais, revistas, rádio, TV e modernamente internet), tornando-se ela formadora de opinião. Como a igreja queria manter sua influência junto à juventude, a atitude de oposição e conflito com os evangélicos e seus líderes foi mudada por orientação de Roma. Treinamento foi dado aos padres a partir dos anos 1960, e a igreja buscou tornar-se mais acessível ao povo e aos pastores. Trabalhos em conjunto na sociedade e ajuntamentos de cunho religioso, os “cultos ecumênicos”, passaram a ser promovidos, com o representante católico colocado em posição superior aos demais, como representante da "igreja mãe".
Dogmas ou doutrinas sobre o pecado, a salvação, o Espirito Santo, a igreja e outros temas têm sido obstáculos para que movimentos ecumênicos realmente prosperem, pois, após as heterodoxias introduzidas no cristianismo pelo catolicismo, após os movimentos reformadores da igreja que resultaram em um grande número de igrejas que interpretam a mesma Bíblia de forma diferente, após o surgimento do pentecostalismo mais recentemente, (o qual dividiu a igreja em duas partes, quais sejam, os carismáticos de um lado e os tradicionais do outro), é preciso que o cristão, seja da igreja que for, busque fortalecer sua fé e conhecer as bases da sua crença, nunca deixando a Bíblia de lado, mas buscando nela a verdade personificada no próprio Senhor Jesus Cristo. Além disso, cremos que o que se deve buscar hoje é uma “unidade na diversidade”, mantendo cada grupo o que lhe é peculiar, mas atendo-se à essência do cristianismo, sem a qual ele não existe. Não é fácil definir-se o que é essencial e o que é acidental na fé cristã, assim como não se devem julgar os diferentes grupos dentro do cristianismo, separando-se o joio do trigo. A Igreja precisa continuar, mesmo reconhecendo que, no século XXI, há muito joio pregando o evangelho, assunto que proximamente deverá ser abordado.

47. A IGREJA CATÓLICA ORTODOXA

“Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um rebanho e um Pastor”. (João 10.16)


A Igreja Católica Ortodoxa é uma comunhão de igrejas cristãs autogovernadas, herdeiras da cristandade no Império Bizantino, que reconhece o primado do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla desde que a sede de Roma deixou de seguir a ortodoxia, segundo informa o portal virtual da organização. A cisão com Roma ocorreu no século XI.
Tudo começou em Bizâncio, uma cidade da Grécia Antiga que, segundo Eusébio de Cesareia, foi fundada por Bizas em 658 a.C.; os romanos latinizaram o nome para Byzantium. A cidade veio a se tornar o centro da parte Oriental do Império Romano que falava grego, da Antiguidade até a Idade Média. Foi nessa região que Constantino criou Constantinopla, a 2ª Roma. A cidade localizava-se em um ponto de cruzamento entre dois continentes, posição de vital importância comercial, cultural e diplomática, a qual lhe permitia controlar as rotas que ligavam a Ásia à Europa, assim como a passagem do mar Mediterrâneo para o mar Negro. Quando a cidade caiu na mão dos turcos em 1453, Constantinopla tornou-se a capital de outro estado poderoso, o Império Otomano, com o nome de Istambul, sendo até hoje a maior e mais importante cidade da atual República da Turquia.
Quando a Grécia passou a fazer parte do Império Romano, os historiadores costumam afirmar que Roma conquistou Atenas pela força das armas, mas foi conquistada pela cultura grega. Na verdade, mesmo a imposição do latim como língua oficial foi mais efetiva na região ocidental, a partir de Roma, do que na região oriental, começando por Atenas. A igreja cristã, tendo surgido na Judeia, no interior da parte oriental do Império, aos poucos foi-se espalhando por todas as regiões, atingindo também a parte ocidental. No entanto, no decorrer dos séculos, as diferenças dentro do catolicismo que surgia se fizeram sentir entre os setores ocidental e oriental. Já no final do século III, Diocleciano havia criado o quadrunvirato, ou seja, o governo de dois “augusti” e dois “cesares”, cada dupla para dirigir o império na parte ocidental e na parte oriental. Constantino, conforme já foi dito, criou Constantinopla, que acabou sendo a capital do Império Romano do Oriente, sobrevivendo a Roma após a queda da cidade diante da invasão dos bárbaros germânicos. A divisão política oficial do Império Romano entre Ocidente e Oriente ocorreu em 395, com o imperador Teodósio. As Igrejas Católicas Ocidental e Oriental conviveram com diferenças durante séculos, vindo a se separar política e eclesiasticamente no século XI, em 1054.
Existem diferenças entre o Catolicismo Romano e o Ortodoxa. A Igreja Ortodoxa não aceita a primazia nem a infalibilidade do bispo de Roma, o Papa, conforme definidas pela Igreja Católica Romana. O Espírito Santo, terceira pessoa da Santíssima Trindade, pela doutrina romana, procede do Pai e do Filho, conforme definido no Concílio de Niceia, enquanto que o Espírito Santo só procede do Pai para os ortodoxos. A Igreja Ortodoxa não admite a existência do purgatório nem do limbo, bem como não aceita as indulgências, a gota d’água que fez transbordar o copo na Reforma Protestante. A Igreja Romana sempre defendeu a imaculada conceição de Maria, enquanto os ortodoxos aceitam sua concepção com o pecado original. Existem diferenças na celebração da missa, bem como nas tradicionais devoções da Igreja Católica Romana; a Igreja Ortodoxa não realiza certas comemorações, como a de Corpus Christi, do Sagrado Coração de Jesus, a cerimônia da Via Crucis, o culto ao Imaculado Coração de Maria, ao Rosário e outras. Enquanto os católicos romanos veneram imagens, os ortodoxos só aceitam ícones nos templos.
Além disso, os sacerdotes ortodoxos têm liberdade de optar entre o celibato e o matrimônio, enquanto os sacerdotes católicos são celibatários por dogma. A Igreja Ortodoxa reconhece o primado do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla desde que a sede de Roma deixou de seguir a ortodoxia. Ela reivindica ser a continuidade da Igreja fundada por Jesus, considerando seus líderes como sucessores dos apóstolos. No seu conjunto, a Igreja Ortodoxa ("igreja da doutrina correta", significado do nome) é a terceira maior confissão cristã, contando, em todo o mundo, com aproximadamente 250 milhões de fiéis, concentrados sobretudo nos países da Europa Oriental, sendo as mais importantes as Igrejas Ortodoxas Grega e a Russa.
No século VIII, Roma colocou-se sob a proteção do Sacro Império Romano-Germânico, enquanto Constantinopla estava sob a jurisdição do Império Bizantino. Criou-se assim uma situação em que as Igrejas em Roma e em Constantinopla estavam no seio de dois impérios distintos, fortes e autossuficientes, cada qual com sua própria tradição e cultura. Essa situação continuou até que Constantinopla deixou de ser cristã, invadida que foi pelos turcos otomanos. Perdendo a situação de sede da Igreja Ortodoxa, a partir de então tal posição passou a ser reivindicada pela Rússia, que se considera a 3ª Roma, época na qual seus imperadores adaptaram para a língua russa o título “césar”, passando a “czar”, nos tempos de Ivan, o Terrível. A igreja Ortodoxa, tornada oficial na Rússia, passou a ser dirigida no reino pelo patriarca de Moscou. Essa situação foi interrompida no século XX, com a revolução comunista. Reinstituídos por Stalin em 1943, o Patriarcado e a Igreja ainda sofreriam perseguições sob Khrushchev, que chegou a fechar 12 mil templos. Menos de 7 mil permaneciam ativos em 1982. Com o ateísmo de estado das nações comunistas, a Igreja Ortodoxa sofreu fortemente com perseguição e censura, e não somente na Rússia, mas também na Albânia, na Romênia, além de outros países do leste europeu.
Atualmente, a Igreja Ortodoxa é formada pela comunhão de catorze jurisdições eclesiásticas autogovernadas que professam a mesma fé e praticam basicamente os mesmos ritos, com algumas variantes culturais. O chefe espiritual das Igrejas Ortodoxas é o Patriarca de Constantinopla, título mais honorífico que efetivo, uma vez que os patriarcas de cada uma dessas igrejas são independentes. Desta forma, diz-se que o Patriarca de Constantinopla é o primeiro entre iguais. Para os ortodoxos, o chefe único da Igreja é o próprio Senhor Jesus Cristo. A autoridade suprema da Igreja Ortodoxa na terra é o Santo Sínodo, que se compõe de todos os patriarcas chefes das igrejas autogovernadas e dos arcebispos primazes das igrejas autônomas, que se reúnem por chamada do Patriarca Ecumênico de Constantinopla. Historicamente, a Igreja Ortodoxa reconhece sete Concílios Ecumênicos: Os dois de Niceia, os três de Constantinopla, Éfeso e Calcedônia.
No Brasil, a Igreja Ortodoxa chegou juntamente com a imigração árabe. A primeira instituição foi edificada em São Paulo, no ano de 1904, sendo que a grande Catedral Ortodoxa foi aberta ao público em 1954, por ocasião da celebração do quarto centenário da cidade de São Paulo.
Os cismas da igreja cristã e as tentativas de volta à unidade inicial no século XX, chamado de Ecumenismo, é o próximo assunto a ser abordado.

46. A IGREJA E A TEOLOGIA

“E disse Deus a Moisés: Eu Sou o Que Sou. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós”. (Êxodo 3.14)


Teologia é a ciência ou conhecimento de Deus: sua natureza, atributos e suas relações com o homem e com o universo. Como ciência, ela é humana, mutável, variando de acordo com a passagem do tempo e com a diversidade das culturas alcançadas pelo evangelho. Vamos examinar sua evolução em diferentes momentos da história da Igreja.
Nos quatro primeiros séculos da história da Igreja, Alexandria no Egito, Antioquia na Turquia e Cartago no norte da África Ocidental foram importantes centros de debate teológico inicial. A participação dos Pais Apostólicos, o desenvolvimento dos credos e a canonização do Novo Testamento destacam-se como importantes contribuições teológicas no período.
Na Idade Média, o Escolasticismo é um dos movimentos intelectuais mais importantes da teologia. Método de pensamento crítico dominante no ensino nas universidades medievais europeias, o Escolasticismo tentava conciliar a fé cristã com o sistema de pensamento racional da filosofia grega. A obra-prima de Tomás de Aquino, Summa Theologica, é apontada como exemplo maior do período.
A época da Reforma, uma das mais criativas na história da teologia cristã, destaca principalmente a teologia de Martinho Lutero e a de João Calvino. Base do ataque dos reformadores à heterodoxia católica medieval, a teologia da Reforma Protestante foi um rompimento com o paganismo religioso do catolicismo, promovendo o retorno às Escrituras, em seus cinco valores fundamentais, conhecidos em latim como Sola Scriptura, Sola Gratia, Sola Fide, Solus Christus e Soli Deo Gloria.
Na Idade Moderna, a partir do século XVIII, a teologia passou a ser um fato global, não mais restrito à Europa, tendo como motivadores a colonização dos Estados Unidos, os avivamentos (principalmente com Jonathan Edwards) e a criação de seminários. Até o século XX, houve uma hegemonia anglo-germânica na teologia e, a partir de então, a prevalência passou a ser dos Estados Unidos. Outros fatos importantes foram: a expansão da teologia Cristã na Austrália, na Ásia, na Índia, no Extremo Oriente e na África abaixo do Saara. O Iluminismo, o movimento mais expressivo ocorrido na Idade Moderna, com seus desdobramentos no Romantismo, no Marxismo, no Protestantismo Liberal, no Modernismo, na Neo-ortodoxia e outros, produziu reflexos na teologia do período. 
Importantes teólogos têm surgido nos últimos séculos. O dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) teve uma vida constestadora. Homem amargo e de convivência difícil, principalmente após uma relação amorosa mal resolvida com uma jovem, após muitos escritos filosóficos polêmicos, Kierkegaard tornou-se teólogo, tentando responder questões como “de que maneira alguém pode ser um cristão verdadeiro em um mundo caído” e encontrando respostas desesperadoras. “Somente os milagres de Deus poderiam nos salvar”, concluía ele. Kierkegaard não tinha esperança nos sistemas ou nas instituições religiosas de sua época. Tendo vivido em um século no qual a igreja luterana dinamarquesa era influente e próspera, Kierkegaard criticava a pouca vida espiritual que nela via. Após ataques devastadores à igreja organizada, Kierkegaard publicou 21 artigos fundamentais no jornal “A Pátria”, entre dezembro de 1854 e maio de 1855. O teólogo faleceu em 1855, aos 42 anos de idade. A influência de Kierkegaard cresceu no século XX, quando foi saudado como o "pai do existencialismo".
No século XIX, os avanços alcançados pela ciência pareciam transformar o mundo em um lugar menos misterioso; por isso, em vez de um Deus sobrenatural, muitos procuravam criar o paraíso na terra. A teoria de Darwin e outros avanços científicos questionavam os elementos sobrenaturais da Bíblia. A teologia liberal daquela época retratava um Deus sem ira, um Cristo ético e um Reino de Deus plenamente mundano. No século XX, no entanto, a I Guerra Mundial esfriou a euforia existencialista vivida no momento, quando muitas pessoas passaram a enxergar a natureza falida do pensamento liberal. Entre esses questionadores estava um pastor chamado Karl Barth.
Voltando-se para a carta paulina aos Romanos e diante das atrocidades da guerra, Karl Karl Barth (1886-1968) encontrou algo que mudou sua fé e promoveu uma volta à teologia de Agostinho, Lutero e Wesley. Em sua obra “Comentário da Carta aos Romanos”, Barth descrevia Deus como soberano e transcendente. A queda do homem foi o primeiro passo, pois a partir de então, o homem estava atrelado ao pecado, não sendo mais capaz de descobrir a verdade de Deus por si mesmo. Deus precisava se revelar ao homem, e ele fez isso através de Jesus Cristo. As afirmações doutrinárias de Barth causaram muita discussão, tornaram-no professor de teologia na Alemanha e colocaram-no em rota de colisão com o discurso de Adolf Hitler sobre a igreja. Em 1935, Barth foi expulso da Alemanha e fugiu para a Basileia, na Suíça, a fim de ensinar teologia, onde escreveu muito, incluindo sua obra principal, os treze volumes da “Dogmática Eclesiástica”, obra-prima teológica do protestantismo. Suas idéias se tornaram a base da neo-ortodoxia.  Embora contestado em algumas ideias que deixou, Barth encorajou o estudo bíblico sério, enfatizou a pregação dinâmica e levou o homem de volta à compreensão de sua necessidade do Deus todo-poderoso. Em uma época em que muitos se haviam  voltado para o mundo em busca de esperança, ele pedia que todos olhassem para Cristo.
O nazismo de Hitler expulsou o teólogo Karl Barth da Alemanha, mas executou Bonhoeffer. Aluno de Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi doutor em Teologia na Universidade de Berlim com apenas 21 anos. Ele era capelão e orador luterano naquela cidade quando Hitler chegou ao poder em 1933. As idéias nazistas começaram a se infiltrar na igreja, com Hitler buscando apoio do clero luterano e católico e seduzindo o povo com a ideia de uma igreja puramente alemã. No entanto, cristãos sinceros se opuseram ao nazismo, aderindo à Declaração de Barmen, de autoria de Karl Barth, a qual destacava os erros doutrinários dos cristãos alemães. Bonhoeffer desempenhou uma atividade político-religiosa em seu ministério, e sua atividade política acabou causando sua prisão em 1943, principalmente por ajudar a introduzir clandestinamente judeus na Suíça. “Cartas e Papéis da Prisão” foi sua obra literária enquanto aguardava a execução, com publicação póstuma. "Cristianismo sem religião", "a morte de Deus", "o mundo atingiu sua maioridade" e outras expressões suas acabaram sem explicação com a sua ausência. Em 1945, Dietrich Bonhoeffer foi enforcado pelos nazistas. A II Guerra Mundial terminaria poucos meses após, no mesmo ano.
Bonhoeffer cria que a fé tem custo, precisa ser convincente e cheia de autonegação. Segundo ele, muitos aceitavam na sua época um cristianismo composto por uma "graça barata", encorajando uma fé fácil. Mais de meio século após sua morte, estamos vendo hoje em muitas igrejas essa triste realidade.

terça-feira, 26 de abril de 2016

45. O PENTECOSTALISMO EM ONDAS

“Que faremos, varões irmãos? E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo”. (Atos 2.37b-38)

“Uma das forças de expansão do pentecostalismo está na sua habilidade em se adaptar e tomar emprestado”, diz A.H. Anderson, um estudioso do movimento. A partir dos acontecimentos da Rua Azusa narrados anteriormente, o movimento pentecostal espalhou-se pelos Estados Unidos e por todos os países cristãos do mundo, chegando também ao Brasil. Como o desenvolvimento tem sido multifacetado nos diferentes países, com surgimento de lideranças, tendências e igrejas muitas vezes com características locais, vamos nos ater aos acontecimentos no Brasil, abordando o que aconteceu e como chegamos à situação atual.
Segundo P. Frestron, outro estudioso do assunto, existem três períodos ou ondas distintas do pentecostalismo do Brasil. A Primeira Onda, o Período Clássico, entre 1910 e 1950, enfatizou principalmente o segundo batismo no Espírito Santo após a conversão, o falar em línguas e a restrição aos usos e costumes entre os membros das igrejas. A Assembleia de Deus e a Congregação Cristã no Brasil são as maiores denominações que surgiram nesse período e atualmente estão entre as maiores denominações evangélicas do país. Louis Francescon (fundador da Congregação Cristã no Brasil) e Daniel Berg e Gunnar Vingren (iniciadores da Assembleia de Deus) para cá vieram dos Estados Unidos, todos tendo sofrido influência da mesma igreja da Avenida Norte, de Chicago, dirigida por William H. Durham. Segundo pesquisadores do pentecostalismo, já estava presente na primeira onda a estratégia de crescimento pentecostal de fazer proselitismo entre os crentes das igrejas evangélicas em missões já existentes. Francescon iniciou sua atividade missionária pentecostal no bairro do Brás, em São Paulo, numa igreja presbiteriana, enquanto os suecos Berg e Vingren se filiaram à 1ª Igreja Batista de Belém, no Pará, fundada e dirigida por um pastor também sueco, Erik (Eurico) Nelson; em ambos os casos, a pregação carismática provocou saída de um grupo de membros das citadas igrejas para início de uma congregação pentecostal. Esse procedimento intensificou-se com a Segunda Onda.
A Segunda Onda, a partir da segunda metade do século XX, diferiu da primeira por fixar-se na cura divina, mostrando um forte interesse em demônios e exorcismos e continuando a restringir os usos e costumes dos membros das igrejas, na maioria dos casos. A Igreja do Evangelho Quadrangular (que iniciou como Cruzada Nacional de Evangelização, lançada no Brasil por Reymond Boatwright e Harold Williams, dois ex-atores de Hollywood), o Brasil para Cristo (de Manuel de Melo) e a Igreja Pentecostal Deus é Amor (de Davi Miranda) são os grupos mais relevantes nesse período, sendo a "Deus é Amor" um grupo legalista e faccioso. Sobre a Igreja do Evangelho Quadrangular, cabe ressaltar que, tendo como ênfase a cura divina e o exorcismo, milhares de evangélicos e curiosos foram atraídos aos seus cultos, por causa das canções de louvor com ritmos populares e mensagens de batismo no Espírito Santo, o que provocou divisões em quase todas as denominações pentecostais. O lema que serve de base à denominação, inclusive tendo inspirado o nome da Igreja voltado para os quatro lados de um quadrado (Jesus salva, batiza no Espírito Santo, cura e voltará) é chamado de “reducionismo doutrinário”, com sérias consequências teológicas, e mais tarde utilizado e aperfeiçoado pelo neo-pentecostalismo no Brasil.
A Terceira Onda, o atual neo-pentecostalismo , começou em 1977 com o início da Igreja Universal do Reino de Deus. A predecessora “Igreja de Nova Vida”, de Walter Robert Mcalister, lançou os fundamentos para a Universal e outros grupos neo-pentecostais ao introduzir alguns ensinamentos e métodos inovadores. Embora as igrejas neo-pentecostais mantenham algumas características em comum com seus antecessores das ondas anteriores, suas definições incluem a ênfase na teologia da prosperidade e na batalha espiritual, além do favorecimento da restrição dos usos e costumes dos crentes. O uso extensivo de canais de mídia, um modelo mais corporativo de organização denominacional e, em alguns grupos, agressividade para com religiões afro-brasileiras são outros traços das igrejas. A Universal (de Edir Macedo) e o “Show da Fé” (de Romildo Ribeiro Soares, cunhado de Macedo) são as duas maiores denominações deste período, embora outros grupos também tenham crescido expressivamente, como a Igreja Mundial do Poder de Deus, do missionário Valdemiro Santiago (dissidente da Universal), a Comunidade “Sara Nossa Terra” (criada por Robson Rodovalho em Goiânia), a Igreja Apostólica “Renascer em Cristo” (do casal Estevam e Sônia Hernandes). Além dos grupos citados, nomes como Rinaldo L. S. Pereira (da Bola de Neve), Valnice Milhomens Coelho (ex-missionária batista na África), Renê Terra Nova e outros atuam em grupos de terceira onda no Brasil, muitos ligados a lideranças equivalentes dos Estados Unidos, como Kenneth Hagin, Benny Hinn. C. Peter Wagner, Oral Roberts e outros, alguns dos líderes polêmicos e contestados.
O movimento neo-pentecostal brasileiro mostra semelhanças e interdependências com o pentecostalismo global e norte-americano, mas com características próprias, as quais têm promovido sua diversificação no cenário evangélico geral no Brasil. Falsos mestres, líderes que, juntamente com suas organizações, ensinamentos e práticas alteram o evangelho de maneira radical, têm dificultado às pessoas a compreensão da necessidade de salvação, não encontrando a mensagem do evangelho que realmente pode libertá-los. C. Butler afirma que a expansão do Reino de Deus está ligada atualmente tanto a um encontro com a verdade quanto a um encontro com o poder.
A igreja global precisa pensar de maneira crítica sobre a realidade cristã que resulta de movimentos transnacionais, como o neo-pentecostalismo. Verifica-se atualmente que a maioria cristã está mudando para o que é chamado de Global Sul (ou seja, nações da África, América Central, América Latina e parte da Ásia); antes considerados campos missionários, agora são pontos de referência para o cristianismo e estão enviando os seus próprios missionários transculturais. E preciso, no entanto, observar e analisar que tipo de missionário cristão está sendo enviado ao mundo e com que mensagem.
Segundo Isaltino Gomes Coelho Filho, já é possível se falar em baixo pentecostalismo, um tipo de neo-pentecostalismo onde as linhas entre o baixo espiritismo e neo-pentecostalismo foram apagadas. Práticas com o uso do sal grosso, sessões de descarrego e oferecimento de sabonete de arruda para espantar demônios estão muito mais para o baixo espiritismo do que para o evangelho. Quando o cristão, estando em um templo para onde foi buscar comunhão com Deus através de Jesus e com seus irmãos de fé, começa a questionar sobre o espírito que está presente dirigindo a reunião e fica com as dúvidas acima colocadas, é sinal de que algo precisa ser revisto na cristologia, na soterologia, na teologia, enfim, da igreja cristã do século XXI, assunto a ser abordado proximamente.

44. O PENTECOSTALISMO E A RUA AZUSA

“E em Jerusalém estavam habitando judeus, varões religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu. E, correndo aquela voz, ajuntou-se uma multidão e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua”. (Atos 2.5-6)

O reavivamento da Rua Azusa foi um movimento de despertamento que ocorreu em Los Angeles, Califórnia. Liderado por William Seymour, um pregador afro-americano, o movimento começou com uma reunião em 1906. O reavivamento se caracterizava por experiências espirituais extáticas, acompanhadas por milagres, cultos de adoração dramáticos, falar em línguas e participação de grupos inter-raciais. Os participantes eram criticados pela mídia secular e por líderes cristãos pelo comportamento considerado ultrajante e não-ortodoxo. Hoje, o reavivamento da Azusa é considerado por historiadores como sendo o primeiro catalizador para a divulgação do pentecostalismo no século XX.
No início do século XX, surgiu William Joseph Seymour (1870-1922), um filho de escravos de pouco mais de 30 anos de idade; acometido de varíola, Seymour ficou cego de um olho e com o rosto marcado,  passando a usar barba para esconder as marcas. Consta que Seymour frequentou uma escola de homens livres, onde aprendeu a ler e escrever. Em 1905, Seymour ouviu a mensagem pentecostal pela primeira vez em Houston, Texas.  Buscou então a escola de Charles Parham (1873-1929) naquela cidade, passando a ser ali um aluno. Por causa das leis de segregação racial da época, ele foi forçado a assistir às aulas no corredor, numa cadeira do lado de fora da sala de aula. Seymour chegou a Los Angeles, na Califórnia, no início de 1906 e pregou na igreja de Julia Hutchins. Tendo pregado no seu primeiro sermão que o falar em línguas era a primeira evidência bíblica do recebimento do Espírito Santo, Seymour foi barrado na igreja pelos anciãos no domingo seguinte, porque ele pregava o que não havia ainda experimentado. Um grupo de pessoas o seguiu e ele passou a promover reuniões de estudo bíblico em uma residência. Após algumas reuniões, um dos integrantes falou em línguas pela primeira vez, seguido por meia dúzia de outros em reuniões seguintes, inclusive Jennie Moore, que mais tarde seria esposa de Seymour. Poucos dias depois, o próprio Seymour falou em línguas pela primeira vez.
As notícias dos acontecimentos circularam rapidamente entre os residentes da cidade de origem afro-americana, latina e branca. Logo as reuniões abrigavam multidões de pessoas falando em línguas, gritando, cantando e pulando. O local das reuniões tornou-se pequeno, forçando o grupo a procurar outro endereço. Alguém que residia na vizinhança descreveu uma reunião da seguinte forma: “Eles gritaram três dias e três noites na época da páscoa. (...) À medida em que as pessoas entravam, elas caíam sob o poder de Deus. (...) Eles gritaram até que os alicerces da casa cederam, mas ninguém se machucou”.
Um prédio na rua Azusa 312, no centro de Los Angeles (originalmente usado por uma Igreja Metodista Africana Episcopal) passou a ser usado. A construção era pequena, retangular, com teto chato, medindo cerca de 220 metros quadrados. Somente uma janela de estilo gótico sobre a entrada principal mostrava que a construção havia sido anteriormente um templo. Sem aparência externa, internamente providências foram tomadas, improvisando-se púlpito e assentos para as pessoas.
As ruidosas reuniões ocasionaram reações por parte da imprensa da época, bem como de outras igrejas evangélicas tradicionais. A publicidade negativa realmente ajudou a trazer mais pessoas: alguma coisa sobrenatural deveria estar acontecendo naquele prédio antigo. No segundo andar da “Missão Apostólica da Fé” havia um escritório e residência de Seymour e Jennie, bem como uma sala de oração. Em maio de 1906, de 300 a 1500 pessoas costumavam se reunir no edifício. Moscas eram constantes nas reuniões, já que o local havia servido como estábulo para cavalos. Homens, mulheres, crianças, pretos, brancos, hispânicos, asiáticos, ricos, pobre, cultos e incultos, pessoas de todas as idades iam para Los Angeles com ceticismo ou desejo de participar. Miscigenação de raças e oportunidade para lideranças femininas no grupo foram apontadas como características positivas do movimento.
O louvor na rua Azusa 312 era frequente e espontâneo, com cultos praticamente em qualquer horário. Entre as pessoas atraídas para o reavivamento, havia também batistas, menonitas, quacres, presbiterianos e membros de outras igrejas. O canto era esporádico e a cappella, e ocasionalmente em línguas. Um observador em um dos cultos escreveu as seguintes palavras: “Não eram usados instrumentos de música. Nenhum coro – os anjos devem ter sido ouvidos por alguns em espírito. (...). Não havia organização eclesiástica por trás das reuniões. Todos os que estão em contato com Deus percebem logo que entram nas reuniões que o Espírito Santo é o dirigente”. O jornal Los Angeles Times não foi tão gentil em sua descrição: “As reuniões são realizadas num casebre decadente na rua Azusa e os devotos de uma doutrina estranha praticam os ritos mais fanáticos, pregam as teorias mais selvagens e se comportam em um estado de louca excitação em seu zelo peculiar. (...) ... a noite se torna horrível na vizinhança pelo alarido dos adoradores, que gastam horas gingando para frente e para trás em uma atitude nervosa de oração e súplica”.
"Fé Apostólica", um jornal mantido pelo grupo, foi publicado no período de 1906 a 1908. Distribuída gratuitamente, a publicação alcançava ministros e leigos ao redor do mundo. Entre os relatos, havia notícias de cegos tendo suas vistas restauradas, doenças curadas e estrangeiros falando outra língua  e sendo entendidos por membros negros sem cultura, que traduziam suas falas para o inglês com “habilidade sobrenatural”.
Às vezes, a pregação consistia da leitura da Bíblia por Seymour e adoradores indo à frente para pregar ou testemunhar, dirigidos pelo Espírito Santo. Não se fazia recolhimento de ofertas, ficando uma caixa de contribuições ao lado da porta para a manutenção financeira da missão. Em geral, 50 a 60 membros frequentavam os cultos regularmente, enquanto centenas e milhares a visitassem constantemente.
O procedimento estranho dos frequentadores da igreja era constantemente criticado por jornais da época e por igrejas tradicionais, por causa do aspecto emocional, uso indevido das Escrituras e perda do foco em Jesus Cristo e centralização no Espirito Santo. Houve mesmo quem quisesse fechar os trabalhos da missão. Por volta de 1913, o reavivamento na rua Azusa havia passado do seu momento de apogeu e em 1915 a maioria da mídia e da atenção das multidões havia diminuído. Houve muitos missionários enviados ao exterior e, em 1908, o movimento já havia se espalhado por mais de 50 nações, incluindo a Grã-Bretanha, Escandinávia, Alemanha, Holanda, Egito, Síria, Palestina, África do Sul, Hong Kong, China, Ceilão, Índia e Brasil.
Mais de 500 milhões são membros dos grupos carismáticos hoje, sendo o reavivamento da Azusa comumente considerado como o início do moderno movimento pentecostal.

43. O PENTECOSTALISMO E SUAS ORIGENS

“Cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar... e todos foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”. (Atos 2.1 e 4)

Para os judeus, o Pentecostes (também chamado Festa das Semanas, Festa da Colheita e Festa dos Primeiros Frutos) era o quinquagésimo dia após o sábado da semana da Páscoa, no primeiro dia da semana. O Pentecostes durava sete dias. Judeus viviam fora de Israel pelo menos desde os exílios da Assíria e da Babilônia. Aos poucos, os judeus da diáspora foram dispersos por todo o Império Romano e para fora dele. A lista de quinze lugares mencionados no capítulo 2 de Atos registra a vasta distribuição geográfica dos judeus na época. Quem eram os que estavam presentes no Dia de Pentecostes? Havia “judeus”, tanto judaizantes quanto helenistas; havia também “judeus da diáspora”; “prosélitos” (ou “judeus honorários”, no dizer do teólogo Karl Barth) também ali estavam; e talvez também “tementes a Deus”, que adoravam a Jeová, mesmo sendo gentios. O Pentecostes de Atos aconteceu durante uma peregrinação dos judeus da diáspora, de prosélitos e possivelmente de gentios tementes a Deus a Jerusalém.
Desde o Pentecostes referido em Atos até a virada do século XIX para o século XX, muita coisa aconteceu na história do Cristianismo. Os dons espirituais, ou dons carismáticos, mencionados no Novo Testamento, apresentam antecedentes na história da igreja desde Corinto, nos tempos apostólicos, até os dias de hoje. Havia na igreja de Corinto um grupo de pessoas com inclinações místicas, com ênfase em certas experiências e práticas religiosas, como profecias e línguas. Paulo mesmo registra ter tido algumas experiências espirituais incomuns, mas ele não as torna regra para todos os cristãos.
Após o primeiro século, surgiu no Cristianismo da Ásia Menor o Montanismo (cerca de 170 d.C.), contando inclusive com a participação de Tertuliano (c.160-c.225), um dos Pais da Igreja. Tendo surgido na Frigia, Ásia Menor, o movimento foi fundado por Montano, que dizia ser o porta-voz do Espírito Santo, o qual iria anunciar a volta de Cristo e a descida da Nova Jerusalém. Apelando para visões e profecias, ele e duas profetisas, Priscila e Maximila, levaram os cristãos a uma santificação como preparação para o final dos tempos. O movimento denominado “Nova Profecia” foi declarado herético pala igreja.
Outros grupos com tendências carismáticas surgiram ao longo do tempo, como os cátaros, por exemplo, até mesmo na época dos reformadores protestantes, que conviveram com pessoas e grupos, principalmente  anabatistas, chamados de “entusiastas”, “libertinos”, “fanáticos” e “espiritualistas” e condenados por Lutero, Calvino e outros reformadores.
Os quacres no século XVII, com sua ênfase na “luz interior”, além de outros grupos e dos avivamentos dos séculos XVIII e XIX, que primavam pela emoção no relacionamento com Deus, foram precursores do pentecostalismo moderno; esses movimentos revelavam insatisfações legítimas com a superficialidade religiosa da igreja oficial e desejavam uma espiritualidade mais profunda. Os despertamentos produziram um tipo de cristianismo mais emocional, independente de estruturas e tradições e tendente a experiências com o sagrado. Reuniões nas zonas rurais e urbanas provocaram o surgimento de grande número de novos movimentos religiosos, alguns dentro dos limites do protestantismo histórico e outros distanciados do mesmo, como os “Shakers”, os Mórmons e as Testemunhas de Jeová.
No final do século XIX, o cenário religioso das igrejas da América do Norte passou a sofrer influências do movimento metodista. A origem do movimento pentecostal moderno é identificada por muitos no metodismo wesleyano, em especial na doutrina do “perfeccionismo”, ou “santificação completa”, a qual ensinava que o cristão pode atingir, em algum grau, a perfeição em santidade durante sua vida neste mundo. Wesley descreveu-a como "...aquela disposição habitual da alma que, nos escritos sagrados, é chamada de santidade; e que implica diretamente em ser limpo do pecado...” Houve objeções de lideranças cristãs na época, além de Wesley não ter encontrado como resolver o problema enquanto viveu. A Bíblia possui inúmeras passagens que dão apoio ao perfeccionismo wesleyano, bem como outras que apoiam a ideia de que não é possível ao homem atingir a santidade total neste mundo.
Como Wesley não chegou a definir completamente a doutrina durante sua vida, John Fletcher, seu sucessor, começou a descrever a plena santificação como um “batismo do Espírito Santo” em termos do Pentecostes do Novo Testamento. A partir de Fletcher, criou-se a crença de que existem nas igrejas cristãos batizados com o poder pentecostal do Espírito Santo e outros que ainda não têm esse poder, ou seja, crentes mais ou menos espirituais.
Surgiram então, na segunda metade do século XIX, em vários lugares dos Estados Unidos, os grupos de santidade chamados em inglês de “holiness”. Os pregadores “holiness” enfatizavam a salvação como um processo que começa na conversão e prossegue na santificação. Com o passar do tempo, alguns líderes do movimento passaram a falar no “batismo com o Espírito Santo e com fogo” como sendo uma terceira experiência na vida cristã, distinta da conversão e da santificação. Anterior e concomitantemente a isso, ocorreram outros movimentos e líderes que iam na mesma direção, tanto nos Estados Unidos como em outros países, como no País de Gales, por exemplo.
Em 1900, Charles Fox Parham (1873-1929), um pregador metodista da linha “holiness” do Kansas, fundou uma escola na qual os alunos pudessem buscar maior conhecimento sobre os dons do Espírito Santo. Em dezembro daquele ano, Parham pediu a seus alunos que procurassem nas Escrituras algum texto que indicasse a existência do batismo no Espírito Santo, tendo os alunos concluído que a experiência seria seguida pelo dom de línguas. Uma aluna chamada Agnes Ozman orou para receber o Espírito Santo e "a glória caiu sobre ela", conforme disse Parham. Afirmou ele ainda: "Um halo parecia cercar sua cabeça e seu rosto, e ela começou a falar o idioma chinês. Ela não foi capaz de falar inglês por três dias." A maioria dos alunos relatou experiência similar. Os eventos se sucederam em Kansas City e em outros lugares, mesmo em outros estados por onde Parham passou, até que outra escola bíblica fosse fundada por ele em Houston, no Texas, onde William Seymour se apresentou como aluno.
A partir de William Seymour, o pentecostalismo começou a tomar forma, a chamar a atenção nacionalmente e a se propagar por todo o mundo. A Rua Azusa 312 em Los Angeles, Califórnia, nos Estados Unidos, tornou-se um marco na história dos movimentos de reavivamento a partir do século XX, assunto que será objeto do próximo segmento.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

42. OS DESPERTAMENTOS DO SÉCULO XX

“Em Deus está a minha salvação e a minha glória; a rocha da minha fortaleza e o meu refúgio estão em Deus”. (Salmos 62:7)

O século XX foi marcado por grandes eventos mundiais, que tendiam para a globalização e que tiveram seus reflexos na atuação da Igreja. Duas guerras mundiais, o comunismo (refletido principalmente nas revoluções russa e chinesa), a expansão da economia mundial na geração do atual consumismo, o crescimento da mídia (com o aparecimento do rádio, do cinema, da TV, do computador e da internet), a emergência feminina para uma maior visibilidade pública foram alguns fatores que fizeram os movimentos de reavivamento mudar sua forma de efetivação.
O reavivamento acontecido no País de Gales, em 1904, deu início ao despertamento no século XX. Liderado por Evan Roberts, um jovem de 26 anos, a partir da pequena cidade de Loughor, em poucos meses Roberts transformou o país, mais de cem mil pessoas aceitaram o senhorio de Jesus Cristo e a notícia se espalhou ao redor do mundo. Os galeses da Pensilvânia, nos Estados Unidos, realizaram movimento semelhante no país e, por volta de 1905, locais como Brooklyn, Michigan, Denver, Nebraska, Carolina do Norte e do Sul, Geórgia, bem como as Universidades Taylor e Yale foram envolvidos.
Paul Rader, pregador e radialista norte-americano, viveu o início da era do rádio, na década de 1920, e afirmou: “Não há nada na Bíblia que diga que o mundo deva ir à igreja; mas tudo na Bíblia diz para a Igreja ir até o mundo! O rádio leva o Evangelho para os que não vão à igreja!” Em 1922, houve a primeira transmissão de rádio nos Estados Unidos, marcando o início de pequenas estações radiofônicas de curto alcance, incluindo programas de variedades e religiosos. Em 1924, existiam no país 600 emissoras de rádio e, no mesmo ano, a evangelista Aimée Semple McPherson, fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular, passou a transmitir os cultos em sua própria emissora, a partir de seu Angelus Temple em Los Angeles. McPherson abriu importante espaço para pregadores pentecostais ao aliar espetáculo, dramaticidade, cura divina e pregação em seus programas. Utilizando-se de diferentes estratégias para divulgar seu ministério, ela dirigia o “Gospel Car” durante suas viagens; caminhão, panfletos lançados de avião, participação em paradas com carro alegórico, sermões gravados vendidos ou distribuídos, muitos foram os recursos usados por McPherson, tendo deixado uma história de criatividade no evangelismo americano.
Oferecendo tantos recursos novos, o século teve grandes pregadores de grandes cruzadas, começando com Billy Sunday. William Ashley Sunday (1862-1935) viveu parte de sua infância em um orfanato, tendo abandonado a escolaridade normal para se tornar jogador de “basebol”, com uma carreira bem-sucedida de esportista por oito anos. Convertido em Chicago e casado, iniciou sua carreira de pregador ainda no final do século XIX.  Ordenado ministro presbiteriano em 1903, promoveu campanhas na primeira metade do século XX, com grandes auditórios sendo alcançados e milhares de conversões para Cristo.
O Fundamentalismo Cristão, fruto do século XX, surgiu nos Estados Unidos, em uma época na qual o cristianismo histórico enfrentava os efeitos deformantes da teologia liberal. Em cinco pontos, a crença fundamentalista inicial pode ser assim enunciada: a. inerrância (ou veracidade) das Escrituras; b. nascimento virginal de Cristo; c. expiação vicária de Cristo na cruz; d. ressurreição corpórea e segunda vinda de Cristo; e. historicidade dos milagres bíblicos. O Seminário Teológico Fuller foi importante para se criar um sentimento de unidade entre protestantes conservadores, sem levar em conta diferenças denominacionais, incentivando a pregação de um Deus vivo e preocupado com as aflições cotidianas das pessoas. Nessa linha conservadora, surgiu, no final da década de 1940, um líder que se tornou a face mais popular do fundamentalismo americano: Billy Graham.
Tendo estudado em importantes escolas, como Universidade Bob Jones e Wheaton College, William Franklin Graham Jr., nascido em 1918, atraiu a atenção da imprensa nacional em sua primeira cruzada evangelística em Los Angeles, em 1949, incentivado por Charles Fuller. Mensagem de arrependimento pessoal, visual arrojado e pregação vigorosa eram sua marca. Suas campanhas eram bem coordenadas e metódicas, com publicidade, treinamento de voluntários e encontros de oração. Falando ao coração de pessoas comuns, Graham dizia coisas como: “Não se trata de quantas almas você ganhou (para Cristo), quão grandes foram os encontros de que você participou. Trata-se do fato de você ter ou não sido fiel no lugar em que Deus o colocou. Se Deus o colocou para vender pneus de automóvel e você os vende com toda fé perante o Senhor e dá testemunho de Cristo em cada um, você ganhará a coroa!” No início da década de 1950, Graham começou a transmitir pelo rádio o programa “Hora de Decisão”. Em 1957, Billy Graham realizou uma gigantesca cruzada em Nova York, planejando-a com antecedência e com resultados bem-sucedidos. Billy Graham pregou no Brasil, no estádio do Maracanã lotado, por ocasião da reunião da Aliança Batista Mundial em 1960. Visando à edificação dos novos evangélicos recém-convertidos, Graham e Harold Ockenga criaram a revista Christianity Today em 1956, publicação que existe até hoje, com edição em português. Graham foi conselheiro espiritual de vários presidentes americanos, estando ligado à Convenção Batista do Sul dos EUA. Aproveitando-se do avanço da mídia nos últimos tempos, Graham já pregou pessoalmente para mais pessoas do que qualquer pregador da história ao redor do mundo, tendo superado, no presente século, a marca de dois bilhões de pessoas que já ouviram a mensagem do evangelho por seu intermédio.
A partir da década de 1960, televangelistas consolidaram seu espaço como formadores de opinião, começando com o pentecostal Pat Robertson nos Estados Unidos, que inaugurou seu próprio canal de TV, a Christian Broadcasting Network. Atualmente, boa parte dos pregadores evangélicos são polivalentes; além de possuírem programas de rádio, TV, utilizam livros, revistas, palestras, conferências, cruzadas, sermões gravados, bem como outros produtos disponibilizados em endereços na internet.
Os reavivamentos surgem durante tempos de declínio moral e espiritual, o que leva o povo de Deus a orar com intensidade. Drogas, pornografia, aborto, homossexualismo, além de outros fatores, são ataques modernos à sociedade, com reflexos diretos sobre as famílias que a constituem, provocando declínio moral e espiritual. A Igreja precisa estar alerta e em oração, em constante reavivamento, para que a fé seja mantida, divulgada e cresça, apesar das dificuldades. Muito ainda poderia ser dito sobre o assunto, mas reservamos os próximos fascículos para entender o maior de todos os movimentos de reavivamento, despertamento ou renovação carismática do século XX: o Pentecostalismo.

41. A IGREJA E OS REAVIVAMENTOS HISTÓRICOS

“E a glória do Senhor se alçou desde o meio da cidade e se pôs sobre o monte que está ao oriente da cidade”. (Ezequiel 11:23)

Tendo em vista a visão de aliança de Deus com os puritanos, John Winthrop, no início da colonização americana, escreveu: "Devemos considerar que seremos como uma cidade sobre a colina, em que os olhos de todo o povo estarão sobre nós". No entanto, à medida que o movimento puritano crescia e prosperava, ele se distanciou dos propósitos religiosos originais; a segunda e a terceira gerações estavam mais preocupadas com as coisas deste mundo do que com o estabelecimento do Reino de Deus na América. As igrejas foram-se esfriando e precisaram de um despertamento.
Reavivamento e despertamento são sinônimos. Jornais que acompanharam os acontecimentos da igreja em 1734, na época de Jonathan Edward em Northampton, Massachusetts, publicaram o seguinte: "Agradou a Deus ... dispensar sua livre e soberana graça na conversão de uma grande multidão de almas em um curto espaço de tempo, mudando-as de uma profissão de fé cristã fria e despreocupada a um livre exercício de todas as graças cristãs, bem como à prática poderosa de nossa santa religião”.
O primeiro grande despertamento de 1734-1743 começou com Jonathan Edwards (1703-1801) ainda como um jovem pastor. Na década de 1730, Edwards, que havia orado a Deus pedindo por “uma colheita”, viu o Espírito de Deus começando a trabalhar de maneira extraordinária e sua igreja começando a ser mais procurada por pessoas que buscavam a certeza de salvação. Aos poucos, isso mudou o clima espiritual da cidade. Cerca de 300 pessoas se converteram em seis meses, numa cidade de 1.100 habitantes. As notícias se expandiram e reavivamentos similares surgiram em uma centena de outras cidades. Partindo da Filadélfia, o inglês George Whitefield (1714-1770) juntou-se ao movimento e pregou para centenas de milhares de colonos, com resultados numericamente bastante expressivos.
De 1800 a 1840 ocorreu nos Estados Unidos o 2º Despertamento. Na virada do século, na população de mais de 5 milhões de habitantes do país, uma em cada quinze pessoas pertencia a uma igreja evangélica. Em 1824, Charles Grandison Finney (1792-1875) começou um ministério que converteria cerca de quinhentos mil pessoas para Cristo. Cerca de cem mil outras pessoas se converteram em Rochester, Nova York, em 1831, num movimento que se espalhou por cerca de mil e quinhentas cidades. Com as imigrações, por volta de 1850, a população do país chegou a vinte e três milhões de pessoas, das quais três milhões eram de membros de igrejas. Finney é apontado como iniciador do "banco dos ansiosos", lugar próximo do púlpito onde os pecadores eram reunidos pedindo orações.
Outros reavivamentos aconteceram, como o dos Homens de Negócio, de 1857-1858, partindo da cidade de Nova York e espelhando-se pelo país, com o acréscimo de cerca de um milhão a mais de crentes nas igrejas. Alguns consideram também o Reavivamento da Guerra Civil de 1861-1865, triste episódio envolvendo o Norte contra o Sul dos Estados Unidos por causa da escravidão, que acrescentou às igrejas cerca de trezentos mil soldados, considerando-se os dois lados.
Os reavivamentos urbanos de 1875 a 1885 começaram com Moody, numa época na qual centenas de milhares de pessoas foram convertidas e milhões de cristãos foram inspirados por aquele que foi chamado de “o maior ganhador de almas de sua geração”. Dwight Lyman Moody (1837-1899), tendo começado seu ministério em Boston, mudou-se para Chicago, onde começou ensinando uma classe de escola dominical formada por alunos pobres que ele próprio buscou nas ruas da cidade. Aos poucos, Moody viu seu ministério crescendo, sendo que, em 1871, seu trabalho em uma igreja em Chicago era bastante confortável, seguro e próspero. Sentindo-se chamado para viajar como evangelista, mas relutante em deixar sua zona de conforto, foi convencido pelo grande incêndio da cidade, que destruiu sua igreja, sua casa e os prédios onde ministrava, tornando impraticável a reconstrução do seu ministério. Moody viajou para a Inglaterra em 1873 e suas reuniões evangelísticas foram muito bem-sucedidas, tendo o evento tornado o pregador uma celebridade internacional dois anos após, ao retornar para os Estados Unidos. Pregando um evangelho simples, sem levar em conta divisões denominacionais, Moody viu sua influência expandir. Ele modernizou o movimento evangelístico, ao fazer aliança com os comerciantes, incentivando a contribuição para boas causas, como o cuidado dos pobres em áreas urbanas, por exemplo. Música, aconselhamento e posterior acompanhamento dos decididos eram partes de uma abordagem organizada para atingir o coração das pessoas. O Seminário de Northfield para moças e a Escola Monte Hermom para rapazes foram resultados do ministério de Moody em sua atuação. Ele foi o precursor de evangelistas como Billy Sunday e Billy Graham, contribuindo também para a ampliação do cuidado social aliado aos esforços evangelísticos.
No entanto, não foi somente na América que houve avivamento. Um jovem de dezenove anos chamado Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) foi convidado para pregar na capela da rua New Park, em Londres, uma igreja de grande prestígio na época. Depois do sermão, Spurgeon foi convidado a se tornar o pastor principal daquela igreja, mantendo-se no cargo por quase quarenta anos.
Tendo vindo da zona rural inglesa, com grandes dificuldades familiares iniciais, sendo seu avô e seu pai ministros congregacionais, Charles frequentou inicialmente uma escola agrícola, não tendo tido acesso às grandes escolas da Inglaterra. Spurgeon logo demonstrou ter o dom da oratória, tendo se tornado pastor de uma pequena Igreja Batista em Waterbeach, onde seu estilo direto chamou a atenção sobre o "jovem pregador" e motivou o convite da igreja citada no início.
Quando Spurgeon assumiu a igreja, o prédio comportava cerca de mil pessoas, mas reunia na época apenas uma centena; havia cerca de oitenta pessoas no seu primeiro culto. Com sua eloquência, a audiência da igreja cresceu, lotando em pouco tempo o grande templo; a igreja alugou então um teatro com capacidade para 4 500 pessoas.
Criticado inicialmente pela imprensa de Londres, com expressões como “de mau gosto, vulgares e teatrais" para seus sermões, além de afirmarem ser seu estilo "ordinário e coloquial, repleto de extravagâncias”, sua plateia chegou a 10 mil pessoas ou mais.
Sermões, comentários e livros devocionais foram publicados por Spurgeon. Batista de convicção calvinista, seu estilo simples e direto apresentou o calvinismo às classes mais simples e introduziu a sinceridade da fé batista às igrejas das classes mais abastadas. Além de Spurgeon, o movimento de avivamento contou com outros pregadores em Londres, que também atraíam multidões.
Com a chegada do século XX, grandes acontecimentos históricos influiriam na continuação dos movimentos de despertamento da Igreja, conforme veremos a seguir.

40. A IGREJA E AS SEITAS

“Senhor, restaurarás tu neste tempo o reino a Israel? E disse-lhes: Não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder”. (Atos 1.6b-7)

Segundo Wayne Gruden, “profetizar é dizer algo que Deus traz de modo espontâneo à mente”. A definição amplia a ideia de que profecia é um relato no qual se afirma prever acontecimentos futuros, segundo comumente se crê, mas não a elimina. O texto acima refere-se a uma pergunta sobre previsão futura profética feita por Cristo e sua resposta aos discípulos, antes de ascender aos céus. O relato a seguir tem a ver com esta profecia.
William Miller, um fazendeiro americano, oriundo de uma família ligada à igreja batista, após conversão na década de 1810, começou a ler a Bíblia, principalmente Daniel e Apocalipse, muito interessado em profecias futuras. Procurava ele descobrir a data da volta de Cristo e do final dos tempos. Após leitura, comparações históricas e cálculos realizados, o ano encontrado foi 1843 para o segundo advento de Cristo. Desde então, autorizado por sua igreja batista, saiu a proclamar o advento por toda a costa leste dos EUA. O movimento se espalhou, ganhando muitos adeptos. Com o passar dos anos, ao chegar 1843, não ocorreu a volta de Cristo. Miller, então, refazendo as contas, marcou o evento para o dia 22/10/1844. Naquele dia, milhares de pessoas, vestidas de branco, passaram a noite toda esperando a volta de Cristo e ficaram novamente decepcionadas, porque nada ocorreu. A partir de então, segundo explicam os adventistas, três grupos se formaram: no primeiro, alguns membros do movimento o abandonaram, regressando às suas igrejas de origem; no segundo grupo, pessoas desiludidas com os acontecimentos abandonaram a fé; o último grupo, os que ficaram, procurou encontrar resposta para a falha na previsão. Após pesquisas, contas e orações a partir de 1844, o grupo chamado de adventista ouviu de um dos integrantes, chamado Hiram Edson, sua visão: “Vi distinta e claramente que o nosso Sumo Sacerdote, em vez de sair do lugar santo do santuário celeste, para vir à terra no dia sétimo do mês, ao fim de dois mil e trezentos dias, entrava naquele dia pela primeira vez no segundo compartimento do santuário e tinha uma obra a realizar no lugar santíssimo antes de voltar à terra”. Segundo a visão, o santuário mencionado em Daniel está no céu e não na terra. Cristo teria ido na data prevista para esse santuário celestial. A sua volta para a purificação do santuário na terra depende do complemento da obra no santuário celestial. A Igreja Adventista do Sétimo Dia tem seu nome dado em função da história relatada, bem como da santificação do dia do sábado. Na sua doutrina sobre a vida cristã, os adventistas afirmam que Deus, “que deseja que vivamos em plenitude e equilíbrio”, ordenou que consumamos “somente aquilo que alimenta nosso corpo e mente”.  Por isso, mantêm os adventistas orientações estritas quanto à alimentação. Outro fator preponderante na fé adventista é a crença contínua em profecias, tendo em Ellen White uma profetisa muito importante. 
As Testemunhas de Jeová constituem uma igreja fundada por Charles Taze Russell, o qual, acompanhado de alguns seguidores, formou um pequeno grupo de estudos da Bíblia, em Allegheny (hoje Pittsburg, Pensilvânia), nos Estados Unidos. Para publicar as suas pesquisas bíblicas, Russell começou a publicar A Sentinela, formando grupos de Estudantes Internacionais da Bíblia entre as pessoas que recebiam a revista. As Testemunhas de Jeová são uma denominação que possui adeptos em 240 países e territórios, com cerca de 8 milhões de praticantes. Seus seguidores são conhecidos pelo trabalho regular e persistente de pregação das duplas, de casa em casa, nas ruas e em locais públicos, testemunhando de seus princípios e dogmas. Chamando a Deus de “Jeová”, a igreja é cristã, possuindo, porém, sobre Jesus uma compreensão diferente das demais igrejas. Do portal das Testemunhas de Jeová copiamos o seguinte texto: “Seguimos os ensinos e o exemplo de Jesus Cristo. Nós o consideramos como nosso Salvador e o Filho de Deus. (...) Mas aprendemos na Bíblia que Cristo não é o Deus Todo-Poderoso, ou seja, a Bíblia não apoia a doutrina da Trindade". Com relação ao Reino de Deus, crê a igreja que, para reinar com Jesus no seu Reino, 144.000 pessoas serão ressuscitadas. Após completado o número, Deus abençoará aos crentes que excederem o número bíblico com saúde perfeita e vida eterna num paraíso na Terra. Com relação à morte, afirmam eles que Deus vai trazer bilhões de pessoas de volta à vida por meio da ressurreição e, após isso, os que se recusam a fazer o que Deus quer serão destruídos para sempre, sem qualquer esperança de ressurreição. Não creem eles em um inferno de fogo. Quanto a valores da vida material, existe um apego (baseado na Bíblia, segundo a igreja), principalmente quanto à neutralidade política, à moralidade sexual e à recusa em aceitar transfusões de sangue.
A história da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias começa na primavera de 1820, com Joseph Smith Jr., aos quatorze anos de idade, buscando saber qual era a "igreja verdadeira". Smith afirmou ter tido uma visão do Pai Celestial e de seu Filho, Jesus Cristo, na qual Deus Pai lhe disse: “Este é Meu Filho Amado. Ouve-o!” A orientação era para ele não se unir a nenhuma das igrejas existentes naquele tempo, pois a igreja de Jesus Cristo não estava na terra. Numa segunda visão, Morôni teria aparecido a Smith na forma de um anjo, falando-lhe sobre um livro escrito em placas de ouro em caracteres até então desconhecidos, que posteriormente ele traduziu, o “Livro de Mórmon”. Juntamente com a Bíblia, Doutrina e Convênios e Pérola de Grande Valor, o Livro de Mórmon é considerado escritura divina para os santos. Seguiram-se outras visões e eventos até que a igreja fosse organizada em 1830, com apenas 6 pessoas (número mínimo exigido pela lei americana). Brigham Young foi o líder que dirigiu o povo até a região central dos EUA, no atual estado de Utah.  A mensagem da Igreja conquistou não apenas seguidores como também inimigos políticos e religiosos. Embora a salvação em Cristo esteja presente, existe toda uma série de doutrinas e de fatos na crença mórmon que não são encontrados em outras igrejas cristãs. 
David Koresh e o Ramo Davidiano, Jim Jones e o Povo do Templo e outros são exemplos de seitas destrutivas do século XX. De acordo com os dicionários, seitas são doutrinas ou sistemas que divergem da opinião geral, geralmente presentes em comunidades fechadas, de cunho radical. Os três exemplos estudados se enquadram na definição, bem como, em alguns aspectos, certos grupos modernos, como o da Congregação Cristã no Brasil, por exemplo, ao divergirem da opinião geral na afirmação de que são os únicos que defendem a verdade. Sectário é o grupo que se separa do todo, cortando sua história de origem das demais, como sendo o único dono da verdade evangélica.  

quinta-feira, 7 de abril de 2016

39. OS HUGUENOTES: A REFORMA NA FRANÇA

“O Espírito do Senhor Jeová está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos e a abertura de prisão aos presos”. (Isaías 61:1)


Tendo surgido no norte da Europa, acima dos Alpes, a Reforma Protestante pouco influenciou inicialmente os países abaixo da cordilheira, principalmente aqueles de cultura e língua oriundas do latim. Por causa de acontecimentos e circunstâncias próprias, vamos dedicar uma atenção especial à Reforma Protestante na França.
No século do movimento, prevalecia ainda na Europa Ocidental o domínio do Sacro Império Romano-Germânico, tentando unir muitos países de formação tão diferenciada sob o mesmo governo. Na época da Reforma, na França, Jacques Lefevre (1455-1536) foi o humanista bíblico francês que polarizou a atenção de um grupo para reformar a igreja católica romana de dentro para fora no país, a fim de que ela mais se aproximasse do modelo das Escrituras. O grupo foi contido e expulso pela realeza francesa.
Na época de Calvino, esse movimento, bem como os ensinos de Lutero, chamaram a atenção dos franceses, em busca de um caminho pelo qual poderia vir a Reforma. O calvinismo chegou à França católica em meados do século XVI. Segundo Earl Cairns, faltou inicialmente ao movimento huguenote na França uma liderança eficaz, chegando mesmo a ser o grupo perseguido pelo governo no seu início. Calvino tentou liderar tanto os protestantes franceses como os de Genebra, tendo enviando para a França pastores por ele orientados. Missionários de Estrasburgo e outras cidades calvinistas foram para a França e com isso o movimento cresceu, tornando-se tão poderoso e bem organizado que acabou se constituindo em “um reino dentro de um reino”. Estabelecida oficialmente em 1559, a igreja protestante francesa contou num momento inicial com 72 congregações em Paris. Posteriormente chegaram a existir na França cerca de duas  mil igrejas e 400 mil huguenotes, nome dado aos protestantes franceses.
No século XVI, quem comandava de fato a França não era a coroa, mas sim a Igreja Católica, totalmente comprometida com a realeza e a nobreza. A França tinha um jovem rei, Carlos IX, mas quem de fato dava as ordens era sua mãe, Catarina de Médici. Para amenizar os conflitos religiosos na época, a casa real francesa fez um pacto de não agressão com os huguenotes, que eram da linha calvinista. Foi nomeado um conselheiro huguenote, o almirante Coligny; Margot, irmã de Carlos IX, foi oferecida em um casamento arranjado ao nobre huguenote Henrique de Navarra, realizado esse realizado na Catedral de Notre Dame.
Um atentado contra Coligny, impetrado por ordem da rainha, embora fracassado de início, abalou a frágil trégua estabelecida. Os católicos espalharam boatos de que os huguenotes estariam se preparando para se vingarem do atentado, e o rei, por pressão de sua mãe, ordenou a execução de Coligny. Depois dessa execução, ao amanhecer do dia 24 de agosto de 1572, dia consagrado pelo catolicismo a São Bartolomeu, começou o massacre dos huguenotes, estendendo-se até o final do mês. Cerca de 3 mil protestantes foram brutalmente assassinados pelos católicos numa só noite em Paris, continuando a perseguição por meses, o que resultou na morte de dezenas de milhares de pessoas no total. Completando o triste episódio, após os acontecimentos, o Papa Gregório XIII mandou rezar uma missa, bem como cunhar uma moeda comemorativa (onde anjos de espada na mão eliminam os opositores) e pintar um mural celebrando o massacre.
Henrique de Navarra, que optara pelo catolicismo, ficou quatro anos preso no Louvre, tendo conseguido fugir para a Espanha. Anos mais tarde, ele se tornou rei da França e, com o Edito de Nantes, concedeu razoável liberdade religiosa aos huguenotes, e com isso os protestantes tiveram um breve período de paz. O cardeal Richelieu rescindiu alguns de seus privilégios políticos em 1629, e Luís XIV oficialmente revogou o Edito de Nantes em 1685. O controle católico sobre a França foi novamente desafiado somente um século mais tarde, com o advento da Revolução Francesa.
Na Revolução Francesa, muitos dos revolucionários eram deístas, acreditando na natureza ou na comunicação direta com Deus, sem intermediários. Os revolucionários substituíram o credo religioso pelo Patriotismo e pelo culto da Fraternidade. Algumas igrejas foram depredadas e a separação formal entre igreja e estado foi decretada em 1795; o país tornou-se uma república em 1798 e o Papa Pio VI foi declarado prisioneiro francês, sendo retirado de Roma e acabando por morrer em Valência, em 1799; seu falecimento foi registrado como o de "Jean-Ange Braschi, exercendo a profissão de pontífice". Foi realizado um Festival da Razão na Catedral de Notre-Dame, tendo sido a própria igreja declarada Templo da Razão, com uma montanha cenográfica e um Templo da Filosofia construído em seu interior. Tentou-se a substituição da Bíblia por textos que misturavam as doutrinas de Moisés, Cristo, Confúcio e Maomé. Finalmente, anos depois, o imperador Napoleão Bonaparte reconheceu oficialmente que o catolicismo era "a religião da grande maioria do povo francês", reabrindo as igrejas em 1802. Atualmente, o protestantismo reformado não tem exercido grande influência na França e os protestantes são uma pequena minoria da população.
Despertamentos ou avivamentos foram movimentos constantes na trajetória da Igreja nos últimos séculos, assunto a ser abordado no fascículo seguinte.