20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

sexta-feira, 10 de junho de 2016

49. A IGREJA E AS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

“Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou. (João 17.14-16)

Cristo pediu ao Pai que não tirasse os seus discípulos de um mundo ao qual não pertenciam, mas que os livrasse do mal. Jesus era judeu, assim como seus primeiros seguidores. A Igreja nasceu, pois, dentro de uma cultura judaica, numa província dominada pelo Império Romano. Ao se expandir para fora da Judeia, a Igreja começou a conviver com outras culturas, inicialmente com a greco-romana e, com o passar do tempo, com outras situações culturais diferentes. Como pregar o evangelho, nascido à sombra do judaísmo, para pessoas de costumes tão diferentes?
Roland Bainton, professor de história eclesiástica de Yale, afirmou: “Quando o cristianismo se leva a sério, ele deve renunciar ao mundo ou então dominá-lo”. A primeira atitude foi característica do cristianismo medieval; através da vida nos mosteiros, o catolicismo incentivava o cristão a renunciar ao mundo. A segunda opção dominou o pensamento dos reformadores. A verdadeira tarefa da vida cristã está nas cidades, nos mercados e nas câmaras de comércio do mundo secular e não no isolamento da cela monástica. A transição do monastério para o mercado, no entanto, foi perigosa, pois o cristão passou a conviver diretamente com a cultura que o circundava. Na sua interação com o mundo da cultura, a Igreja tanto influenciou quanto foi influenciada. Cultura constitui um significado complexo, que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano, não somente em família, mas também por fazer parte de uma sociedade mais ampla da qual é membro. 
Em 1951, Richard Niebuhr escreveu “Cristo e a Cultura”, no qual procura discutir a relação entre Cristianismo e civilização. Cristo é perfeito e sem pecado; se a cultura é criada pelo homem, desde que os seres humanos são imperfeitos e pecadores, como pode Cristo se misturar com a imperfeição? Baseados nas posições iniciais de Niebuhr e em Ronaldo Lidório, no seu artigo “Crescendo em fé e missão” (revista Cristianismo Hoje), vamos tentar entender o problema.
Segundo o autor, o evangelho é inicialmente cultural, pois foi revelado à humanidade, em seu tempo e contexto, inserido em uma cultura própria. A posição supracultural do evangelho de Cristo permite que, estando acima da cultura, o evangelho se manifeste, defina e explique a cultura humana. O evangelho pode também ser encarado como intercultural, ao possibilitar que pessoas de diferentes culturas sejam um só corpo em Cristo Jesus. Torna-se ele multicultural, já que é destinado a todos os povos, línguas, tribos e nações. Assume o aspecto transcultural porque deve ser transmitido de uma cultura a outra. Finalmente, ele é contracultural, ao confrontar o homem em sua própria cultura, vida e história. As posições podem ser encontradas não todas ao mesmo tempo, mas em determinados momentos específicos da história da Igreja, como a contracultural, por exemplo, ao observarmos o monasticismo católico, a posição dos anabatistas iniciais e de certos movimentos pietistas.
O tema é amplo e tem múltiplos aspectos a serem considerados. Por isso, vamos focalizá-lo principalmente em relação à arte e seu envolvimento com a Igreja Cristã. Arquitetura, escultura, pintura, literatura, música, teatro e cinema têm estado presentes na atividade da Igreja, em situações que variam desde uma aceitação e uso plenos até momentos de aversão total a elas. Veja-se, por exemplo, a posição de Martinho Lutero sobre a música: “Depois da palavra de Deus, a música merece o mais alto louvor. Não acredito que todas as artes devam ser removidas nem proibidas por causa do evangelho, como sugerem alguns fanáticos. Ao contrário, veria com alegria todas as artes, especialmente a música, no culto a ele que as deu e as criou”. No entanto, seu contemporâneo Zuinglio baniu-a totalmente do culto, mandando até construir uma parede em uma catedral para isolar o órgão da visão dos devotos.
A pintura no Catolicismo trazia à vida didaticamente o drama da liturgia, suplementando-o pelas imagens. Com o aparecimento do protestantismo, houve uma ruptura com o passado: iconoclastia, destruição de relíquias e altares, vestes clericais rasgadas e outras manifestações acabaram com muitas obras artísticas.
Sobre a arte da palavra, afirmou o escritor puritano Richard Baxter: “A literatura promove ativamente uma cultura de mentiras, que enfeitiça e corrompe de forma perigosa a mente de jovens e de pessoas vazias”. Áreas como poesia, romance, teatro e outras eram inicialmente repudiadas pelos protestantes, por lidarem com ficção, imaginação, representações da realidade em lugar da verdade do evangelho. Basta lembrar que a palavra grega “hipócrita” era o nome dado aos atores teatrais que escondiam sua verdadeira face atrás de máscaras no palco. As barreiras aos poucos foram caindo, diante de obras como o romance “O Peregrino” de John Bunyan (1572-1631), a poesia de John Milton, bem como os hinos de Bach e outros grandes artistas cristãos. 
Além da arte, existe o esporte, com seu relacionamento com o protestantismo começando no século XIX. No início, o esporte foi encarado como desperdício de tempo, de esforço e uma distração das coisas mais serias. No século XIX, quando a atividade começou a ser vista como aliada da saúde, seu potencial como ferramenta de testemunho cristão e formação social foi revisto. O “cristianismo muscular” começou a tomar corpo quando se constatou que o número de mulheres na igreja era muito maior do que o de homens. Usando-se esportes como o críquete, muito popular na Inglaterra, a igreja procurou atrair homens para suas fileiras. A Associação Cristã de Moços tem ajudado a difundir a ideia “corpo saudável com fé saudável”, indicando o esporte como meio de enriquecimento físico e espiritual. 
Arte, esporte, ciências sociais, o papel social da mulher, a importância da família e tantos outros temas poderiam ser aqui discutidos, num assunto que, como dissemos, é amplo e multifacetado. Hoje já se nota uma preocupação maior da Igreja para estudar e entender o seu relacionamento com as culturas, refletido, por exemplo, na preparação dos missionários para abordarem culturas ainda não alcançadas pelo evangelho. No passado, muitos erros existiram nesse campo, ao entenderem os promotores de missões que o evangelho fazia parte da cultura europeia ocidental, por exemplo, e com ela deveria ser pregado, numa superposição de uma cultura à outra. 
Vivemos em um mundo ao qual não pertencemos espiritualmente. Sobre o assunto, Calvino afirmou: “Temos que atravessar este mundo como se ele fosse um país estrangeiro, relacionando-nos superficialmente com todas as coisas terrenas e recusando-nos a permitir que nosso coração se apegue a elas”. Não é fácil relacionar-se superficialmente com as coisas da terra, vivendo hoje cercado de tanto materialismo, consumismo e busca da felicidade. No entanto, convivemos com a cultura ao vivenciarmos o evangelho, e é preciso entender como podemos lidar com o problema.

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