20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

20. A IGREJA E AS MUDANÇAS DO SÉCULO XV

“Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos .” (Malaquias 3.6)

Há um momento na história da Igreja no qual os acontecimentos históricos precisam ser conhecidos para se avaliar o que eles representaram para a fé cristã, no transcorrer dos futuros fatos históricos . No século XVI, em Portugal, viveu um poeta chamado Luís de Camões (1524-1580), de cuja obra extraímos os seguintes versos:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/muda-se o ser, muda-se a confiança;/todo o mundo é composto de mudança,/tomando sempre novas qualidades.”
Embora escrito no século XVI, o soneto de Camões de onde extraímos o quarteto inicial mostra o reflexo das mudanças que o poeta via no Portugal de sua época, novidades que o mundo começou a apresentar nos séculos anteriores e que tiveram seu apogeu no século XV. Para Camões, as mudanças começaram a se refletir na poesia, que, como todas as demais artes, passava por uma mudança radical no chamado Renascimento.
Roma, que havia sido capital de um imenso império por séculos, não se esquecia da glória antiga, como promotora das artes, da filosofia, da cultura, enfim. Não foi por acaso que o Renascimento surgiu em terras italianas, com o poeta Petrarca que, imitando o estilo de Cícero, poeta romano, passou a compor seus poemas em latim. A arte, até então dedicada à religião e gerenciada pela Igreja, passou a se inspirar no ser humano. Muitos artistas apareceram nas diferentes áreas, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Cervantes, Shakespeare e Camões, além de outros. Com o Renascimento, cansado de tanto teocentrismo místico católico, o ser humano foi levado a apreciar o humanismo, que buscava um antropocentrismo, ou seja, colocava o homem como o centro das atenções. O humanismo foi o movimento que buscou o renascimento da cultura, partindo de Atenas e Roma, sendo essa a realidade geral nos países latinos abaixo dos Alpes. Acima dos Alpes, porém, nos países de formação mais germânica, essa revalorização da cultura clássica e antiga envolveu não somente a volta ao grego e ao latim, mas também às origens bíblicas, despertando também um interesse pelo conhecimento do hebraico e do aramaico; é o humanismo cristão. Desiderius Erasmus, de Rotterdam (1467-1536), já mencionado, foi o líder e modelo literário do século.
Constantinopla, a “Nova Roma” construída por Constantino, tornou-se uma das cidades mais importantes do mundo, funcionando como uma passagem para as rotas comerciais que ligavam a Ásia à Europa por terra, além de ser o principal porto nas rotas que iam e vinham entre os mares Mediterrâneo e  Negro. O cisma entre as Igrejas Católicas Ortodoxa e Romana manteve Constantinopla distante das nações ocidentais. Constantemente assediada pelos muçulmanos, após longo período de sítio, em 1453, as muralhas de Constantinopla, tidas como inexpugnáveis, cederam aos ataques dos turcos otomanos sob o comando de Maomé II, que dirigia um exército de cerca de 80 mil turcos. A cidade, último vestígio do Império Romano do Oriente e do antigo Império Bizantino, caiu nas mãos dos muçulmanos; sua queda abriu caminho aos poucos para o surgimento de um novo momento na história: a Era Moderna. A cidade e seus moradores foram poupados da destruição porque houve interesse em mudar a capital turca para lá. O nome foi mudado para Istambul, mantido até hoje, e prédios foram reaproveitados, como a Igreja Haja Sophia, transformada em mesquita muçulmana.
Com o fechamento das rotas comerciais usadas pelos reinos da Europa Ocidental no seu comércio com a Ásia, principalmente com a Índia e a China, os europeus ocidentais se viram obrigados a buscar novos caminhos pelos oceanos, especialmente o Atlântico e o Índico. Não havia grandes conhecimentos e experiência para essas navegações transoceânicas, já que, desde o Império Romano, as navegações eram costeiras ou através de mares. Ocupando uma posição favorável na Península Ibérica, projetando-se na direção do Oceano Atlântico, Portugal e Espanha se lançaram em projetos de navegação buscando novos instrumentos, tendo Portugal inclusive desenvolvido uma escola para navegantes, a Escola de Sagres, fornecendo mão de obra formada para uma nova profissão, os navegantes transoceânicos, função que surgiria com força a partir do final do século XV. Mito ou realidade, Sagres acabou tendo seu nome ligado a navegações e descobrimentos de menor abrangência na primeira metade do século XV, explorando as ilhas e as regiões costeiras da África. Em 1434, Gil Eanes foi além do Cabo Bojador, a Taprobana de “Os Lusíadas” de Camões. Além do Bojador era o Mar Tenebroso dos geógrafos árabes, navegação temida pelos europeus pelas dificuldades no regresso, a qual exigia novos conhecimentos científicos. Instrumentos de navegação, como o quadrante, o astrolábio e a balestilha, foram desenvolvidos e aperfeiçoados por Portugal e Espanha no segundo quartel do século XV, para determinar a posição do navio no mar. Bartolomeu Dias ultrapassou o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, em 1487, num trajeto que seria repetido por Vasco da Gama, descobrindo o caminho marítimo para a Índia, em 1498. Essa atividade cresceria até o final do século e no próximo, provocando não somente a descoberta de novas rotas comerciais de navegação, mas também de novas terras e de um continente totalmente desconhecido. A partir do século XVI, a Europa se envolveria na colonização das novas terras descobertas, começando por Portugal e Espanha, os pioneiros, mas abrangendo também aos poucos ingleses, franceses, holandeses e outros povos. O “mapa mundi” conhecido na época passaria a ser redesenhado.
Contrariando o que se afirma, o alemão Johannes Gutenberg (c.1400-1468) não inventou, mas aprimorou a imprensa no século XV. A técnica de imprimir com caracteres móveis é, na verdade, asiática e muito antiga. Começando com a criação do papel pelos chineses no século I da Era Cristã, passando pela gravura em pedra, a cópia manual, a xilografia, a técnica de impressão foi sendo aperfeiçoada, esbarrando no problema: o material utilizado para imprimir não podia ser reaproveitado em novas impressões, fato que encarecia o processo. Johann Gutemberg desenvolveu os caracteres móveis de chumbo, que podiam ser utilizados indefinidamente; desenvolveu ainda uma nova tinta de impressão e criou a prensa para imprimir. O primeiro fruto de seu trabalho foi a impressão de uma edição da Bíblia, em 1456, o primeiro livro produzido na Europa com a ajuda dos caracteres móveis, com tiragem de 180 exemplares. Ainda existem 48 cópias dessa Bíblia, conservadas em museus e bibliotecas mundo afora. O processo foi longo e dispendioso, exigindo muito esforço, o envolvimento de outras pessoas e financiamento. O surgimento da imprensa mudou definitivamente o mundo, em todas as suas dimensões: política, econômica, intelectual, social e religiosa. A partir de Gutemberg, a imprensa disseminou-se com uma rapidez muito grande: em pouco tempo, mais de mil oficinas espalharam-se pela Europa, produzindo muitos milhares de publicações  ainda no século XV. A obra de Gutemberg mudou para sempre o panorama cultural do mundo, pois, a partir de sua criação, publicações e textos em geral puderam ser impressos e reproduzidos com facilidade e em tiragens cada vez maiores. No século XVI, para Lutero e os reformadores da Igreja, isto seria de uma ajuda inestimável, tornando possível a disseminação das ideias de forma muito mais rápida do que acontecia antes de Gutemberg. Partindo do interesse pela leitura da Bíblia, escolas foram abertas e o povo desafiado a aprender a ler e a escrever, fato que até então não fazia muito sentido.
E a Igreja no século XV: qual era a sua situação? Na Idade Média, a igreja era a única agência internacional com credibilidade ou influência relevante. Por ser muito conservadora, a Igreja medieval não podia ser desafiada e oferecia apoio teológico para a ordem social e física existentes, ordem essa considerada de origem divina, com regras fixas e permanentes, respeitando a autoridade tradicional de famílias e de monarcas ordenados por Deus. Era uma visão estática da igreja, em um mundo de mudanças dinâmicas. Movimentos e líderes religiosos não aceitavam mais as imposições do catolicismo, gerando reações e seguidores.
Concluindo o assunto, afirma Alister McGrath: “Uma teologia religiosa que legitimasse a mudança, ou talvez até mesmo a encorajasse, poderia enfraquecer essa visão de mundo estática e abrir caminho para uma alternativa dinâmica”. No entanto, isto somente iria acontecer no século XVI, com os reformadores, assunto do próximo fascículo.

19. A IGREJA E OS PRÉ-REFORMADORES

“Se alguém ensina falsas doutrinas e não concorda com a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino que é segundo a piedade, é orgulhoso e nada entende.” (1 Timóteo 6.3-4a)

Tendo iniciado suas atividades no primeiro século como uma entidade perseguida e martirizada, após três séculos, a Igreja Cristã conheceu novos tempos com Constantino, o qual deu início a um processo que levaria o Cristianismo, já na forma de um catolicismo bem avançado em sua estruturação, a se tornar a religião oficial do Império Romano. Com o advento do Catolicismo, surgiram heterodoxias, contrariando muitos dos elementos da ortodoxia inicial. As mudanças introduzidas nem sempre agradaram a todos, motivando, ao longo dos séculos, o surgimento de grupos dissidentes, como montanistas, novacianos, paterinos, donatistas, paulicianos, arnoldistas, albingenses e outros, praticamente todos aniquilados pela Igreja. Os Albingenses, por exemplo, surgiram em Albi, cidade situada ao sudoeste da França, no século XIII e defendiam a existência de dois princípios supremos, o Bem e o Mal, sendo o primeiro o criador dos espíritos e o segundo o da matéria. Os que seguiam suas práticas eram denominados "perfeitos" e considerados uma espécie de herdeiros ou continuadores das práticas dos apóstolos. Outros líderes, como Pedro de Bruys, do sul da França, levantaram sua voz para pregar contra os desvios da fé cristã primitiva, sendo perseguidos por Roma. Johannes Tauler (1300-1361), um místico, teólogo e pregador católico da ordem dos dominicanos, foi outro líder que lutou por mudanças, influenciando mais tarde a Lutero por suas ideias quanto à doutrina da justificação. Essas insatisfações não tinham por objetivo criar uma nova igreja, mas sim levar a igreja romana a se voltar para a Palavra de Deus. Dessa maneira, a pré-reforma, e mesmo a Reforma, podem ser vistas como movimentos internos da Igreja por parte de “católicos” comprometidos com a Bíblia.

Apesar da perseguição, porém, existiram alguns movimentos que persistiram até o século XVI, com seguidores até na época de Lutero. Os Valdenses foram seguidores de Pedro Valdo, que morreu em 1217. Originários de Lyon, região da atual França, os valdenses reuniam-se em casas de família ou mesmo em grutas, negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens e procuravam praticar a doutrina cristã apostólica. Com o movimento reformador de Lutero, eles juntaram-se ao protestantismo na década de 1530, seguindo uma linha calvinista. Existem seguidores desta linha ainda hoje em países como Uruguai, Argentina, Itália e Estados Unidos.

Outro grupo que deixou seguidores até o século XVI foi o iniciado pelo inglês John Wycliffe (1328-1384), que pregava o retorno da Igreja à primitiva condição dos tempos apostólicos, além da separação entre os dois poderes: a Igreja para questões espirituais e o poder político exercido pelo Estado. Vivendo num período pouco posterior ao “exílio babilônico” de Avignon e ao Grande Cisma da Igreja Romana, Wycliffe entendia que o cristão não precisa de Roma ou Avignon, pois Deus está em toda parte. Acreditava que “nosso papa é o Cristo” e deixou registrado que “a verdadeira autoridade emana da Bíblia, que contém o suficiente para governar o mundo”. Seus seguidores ficaram conhecidos como "lolardos", um grupo de pessoas vestidas de roupas simples, sem calçados, de cajado na mão e dependendo de esmolas, os quais percorreram a Inglaterra levando seus textos bíblicos manuscritos e pregando o evangelho. Professor em Oxford, Wycliffe fez a primeira tradução do Novo Testamento para o inglês. Opondo-se a indulgências, ordens religiosas, transubstanciação e outros dogmas da Igreja Romana, foi perseguido em vida e, após a morte, foi julgado como herege pelo Concílio de Constança, sendo seus restos mortais exumados e queimados. Ele é chamado por alguns de "Estrela d'Alva da Reforma". 
Na Europa continental, mais especificamente na Boêmia (atualmente parte da república Tcheca) surgiu outro grupo de pré-reformadores com remanescentes até em período posterior à Reforma surgiu. Jan Huss (1373-1415) foi reitor na Universidade de Praga e teve suas ideias reformistas influenciadas por Wycliffe. Como as ideias eram contrárias a Roma, Huss foi proibido de pregar pelo papa, tendo sido, por sua persistência, convocado a comparecer em Roma, recusando-se a ir e sendo excomungado. No Concílio de Constança defendeu-se pessoalmente, tendo sido preso e acusado de heresia. Huss morreu na fogueira. Precursor do movimento protestante e tendo desempenhado um importante papel na história literária tcheca, hoje sua estátua pode ser encontrada na praça central de Praga. Seus seguidores ficaram conhecidos como Hussitas.
Duas figuras individuais dentro da Igreja Católica, que não a abandonaram, mas se opuseram a Roma, foram Savonarola e Erasmo. Jerônimo Savonarola (1452-1498), italiano de Florença, pregava sermões para grandes multidões contra a sensualidade e o pecado da sua cidade e os vícios do papa, em reuniões que enchiam a catedral da cidade. Os moradores ouviam e tentavam seguir seus ensinos, mas o papa Alexandre VI procurou calar o pregador. Savonarola foi enforcado e queimado na grande praça de Florença em 1498, dezenove anos antes da divulgação das 95 teses de Lutero.
Na Holanda, em Rotterdam, surgiu a figura de Desidério Erasmo (1466-1536), um grande crítico da Igreja Católica e contemporâneo de Lutero. Erasmo foi uma figura importante para se entender as transformações pelas quais passou a fé religiosa e o pensamento ocidental, da Idade Média à época moderna. Tendo recebido forte educação religiosa e latinista, Erasmo tornou-se sacerdote por volta de 1492, deixando a batina logo depois; na Sorbonne, aprimorou-se no pensamento clássico, tendo lecionado na Inglaterra (Cambridge), Bélgica e Espanha. Como humanista, Erasmo acreditava que a razão tinha de ser de utilidade ao homem, criticando teólogos e filósofos que defendiam uma fé católica artificial, incoerente e mística. Ele opôs-se a Lutero, pois acreditava que o catolicismo devia ser reformado internamente, sem cismas nem sangue. Colóquios e Elogio da Loucura são duas importantes obras suas. Seus textos foram tão importantes que geraram na época a criação de um adjetivo, “erásmico”, para tudo o que fosse engenhoso, acadêmico ou sabiamente escrito, no sentido de sem erro e perfeito. Sobre Erasmo, afirma Justo Gonzalez, no livro “A Era dos Sonhos Frustrados” que “... o humanista holandês procurava a reforma dos costumes, a prática da decência e a moderação; pouco a pouco foi conquistando a admiração de boa parte dos eruditos da Europa, que se escandalizavam com as atividades dos papas da Renascença; entre seus admiradores havia não poucos nobres e soberanos.” Após o advento da Reforma, porém, “... Erasmo não tinha percebido a profundidade das questões em debate, e a reforma por que ele tanto ansiara não aconteceu; seu sonho, como tantos outros antes, foi frustrado.”

Por praticamente doze séculos, o Catolicismo se estabeleceu como religião oficial do Império Romano e da região da Eurásia que o sucedeu, perseguindo e aniquilando os movimentos contrários à sua ortodoxia, os quais considerava heréticos. No entanto, muitos dos movimentos e dos líderes que se opuseram às heterodoxias católicas levantaram bandeiras, algumas das quais, a partir do século XVI, seriam retomadas pelos movimentos reformadores protestantes. Alguns dos movimentos e dos pré-reformadores dos séculos anteriores a Lutero conseguiram, a duras penas, sobreviver até o século XVI. Savonarola, Erasmo e mesmo os reformadores iniciais não tinham intenção de acabar com a unidade da Igreja, mas de reformá-la internamente naquilo que viam como desvios. Os futuros fascículos discutirão os rumos que a Igreja tem tomado, desde que católicos e protestantes foram colocados em posições eclesiásticas antagônicas. 
Houve, porém, um período na história, principalmente na Europa Ocidental, quando muitas mudanças começaram a ocorrer, as quais foram fundamentais na preparação do mundo para o movimento reformador que seria iniciado por Lutero. No próximo fascículo, vamos abordar as mudanças do século XV e seus reflexos na Igreja.  

terça-feira, 11 de novembro de 2014

18. A IGREJA, AS CRUZADAS E O PAPADO

“Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo; porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.” (Efésios 6.11-12)

Nos tempos apostólicos, a armadura era o uniforme de guerra do soldado romano, elemento usado por Paulo para comparar com o aparelhamento do cristão nas batalhas espirituais. A mensagem de Cristo nunca foi guerreira no sentido literal, embora tenha sido por vezes revolucionária. No entanto, uma igreja que enfrentou por trezentos anos a perseguição de soldados romanos equipados, após a invasão bárbara ao Império Ocidental passou a conviver com povos guerreiros e belicosos, que a influenciaram de tal forma que seus líderes começaram a desenvolver espírito guerreiro, uma das marcas deixadas no cristianismo pelos povos germânicos anexados ao Império. Isto ficou evidente na história em vários momentos, mas principalmente nas cruzadas. E tudo foi motivado por uma cidade que até hoje tem sido lugar de conflito ao longo da história: Jerusalém. 
O que foram as cruzadas? As cruzadas se constituíram em uma “guerra santa”, logo após o domínio dos turcos muçulmanos sobre a região da Palestina, considerada sagrada pelos cristãos. Após domínio da região, os turcos passaram a impedir ferozmente a peregrinação dos europeus, através da captura e do assassinato de muitos peregrinos que visitavam o local em nome da fé. As cruzadas aconteceram entre os séculos XI e XIV. Em 1095, o papa Urbano convocou o Concilio de Clermont, quando informou que havia uma horrível notícia sendo propagada, sobre uma raça amaldiçoada e totalmente alienada de Deus que havia invadido as terras dos cristãos, expulsando-os pela espada. Apelava Urbano que os cristãos deveriam retomar as terras daquela raça invasora. "Deus vult! Deus vult!" “Deus deseja”, disse o papa, repetiu a multidão, e esse se tornou o grito de guerra das Cruzadas. Foi o início do primeiro empreendimento, o de melhor resultado final. A longo do percurso, franceses e italianos foram aderindo ao movimento, alguns motivados por objetivos religiosos, outros pensando nos lucros que teriam e outros ainda na aventura que seria recapturar os locais de peregrinação da Palestina que haviam caído nas mãos dos muçulmanos. Urbano assegurava que os guerreiros cruzados entrariam no céu diretamente, ou teriam redução no tempo de purgatório.
Após a Primeira Cruzada, foi criada a Ordem dos Cavaleiros Templários, que teve importante participação militar nos combates das Cruzadas seguintes. Os templários eram guerreiros ferozes fiéis à Igreja, que não hesitariam em dar a própria vida pela causa que lhes fosse confiada. Havia entre os templários padres, cavaleiros, soldados, além dos cavaleiros hospitalários, que tanto combatiam quanto cuidavam dos feridos. Tudo era feito em nome de Cristo sob o símbolo da cruz.
A Segunda Cruzada (1147-1149) foi proclamada por Bernardo de Claraval para libertar Edessa. A Terceira Cruzada (1189-1192) foi liderada pelos reis Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, pelo alemão Frederico Barba Roxa e pelo francês Filipe II. A Quarta Cruzada aconteceu entre 1202 e 1204, desastrosa em seus efeitos, porque se voltou contra a grande cidade cristã de Constantinopla, que foi brutalmente saqueada. A Quinta Cruzada (1217-1221) terminou em fracasso. A Sexta Cruzada ocorreu entre 1228 e 1229. Após a Sétima e a Oitava Cruzadas (1248-1270), os cruzados se retiraram definitivamente da Palestina, com a queda da cidade de Acre na mão dos muçulmanos. A Oitava Cruzada encerrou essa série de campanhas militares. Existe até a menção lendária de uma Cruzada das Crianças, ou Cruzada dos Inocentes, nome dado a um conjunto de fatos misturado com algumas fantasias que ocorreram no início do século XIII.  
O legado das Cruzadas foi variado: ameaça no relacionamento entre as igrejas do Ocidente e do Oriente, reação mais fanática dos inimigos por causa da brutalidade dos cruzados, grande incremento ao poder do papado pela liderança conseguida ao número de soldados arregimentados, além de outras. As consequências negativas das cruzadas foram mais marcantes e acabaram por se manifestar mesmo em nossos dias. A crueldade dos guerreiros cristãos que atenderam aos apelos papais para fazerem algo que, segundo o Pontífice, Deus queria que fosse feito, acabou por ocasionar, em nossos dias, uma “jirad” islâmica contra o mundo ocidental, uma “guerra santa” em sentido inverso, em nome da mesma vontade de seguir os desejos de Alá de conquistas de poder material.

Como legado positivo, podemos apontar o renascimento do comércio na Europa com reaquecimento da economia no Ocidente. Os guerreiros também trouxeram para a Europa novos conhecimentos originários do Oriente, vindos da influente sabedoria árabe. No aspecto cultural, as Cruzadas favoreceram o desenvolvimento de um tipo de literatura voltado para as guerras e os grandes feitos heroicos. Os contos de cavalaria tiveram como tema principal os conflitos das cruzadas. As Cruzadas, como se viu, foram patrocinadas e promovidas pelo papado em Roma. O papa, segundo a crença católica, é o sucessor apostólico por excelência, existindo desde Pedro, nos tempos iniciais da Igreja. Sobre o papado, o pastor presbiteriano Alderi Souza de Matos afirma que, “desde uma perspectiva protestante, o papado não é uma instituição de origem divina, mas resultou de um longo e complexo processo histórico. As Escrituras não dão apoio a essa instituição como uma ordenança de Cristo à sua igreja.” A história mostra que a palavra papa, no grego ou no latim, foi inicialmente aplicada a altos oficiais eclesiásticos de todos os tipos, especialmente aos bispos, mas, a partir de meados do quinto século, passou a ser aplicada quase que exclusivamente para os bispos de Roma. Na região oriental do Império, Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla competiram pela supremacia sobre as demais congregações, mas no Ocidente a igreja de Roma foi praticamente a única líder desde os primeiros séculos. Os bispos de Roma alcançaram grande preeminência e o papado, em muitas ocasiões, prestou serviços relevantes à igreja e à sociedade, tendo muitos papas sido homens de grande piedade, integridade moral, saber teológico e habilidade administrativa. Dois papas, dada a importância histórica que tiveram, podem ser realçados. Gregório I, ou Gregório Magno (590-604), o primeiro monge a ocupar o trono papal, deixou uma longa lista de feitos, como a supervisão das defesas romanas contra os ataques dos lombardos, a realização de negociações com o imperador bizantino, saneamento das finanças da igreja, além de ter sido estudioso das Escrituras. Ele reformou a liturgia, regularizou as celebrações do calendário cristão e promoveu a música sacra (o "canto gregoriano"). Finalmente, Gregório foi um grande promotor de missões, enviando missionários para vários centros estratégicos do norte e do oeste da Europa e expandindo a área de jurisdição do papado. Inocêncio III (1198-1216), considerado o papa mais poderoso de todos os tempos, concretizou o ideal de uma sociedade plenamente integrada sob a autoridade dos reis e especialmente dos papas. Foi ele o introdutor do título "vigário de Cristo" para o papa, antes somente considerado representante de Pedro.
Na época de Lutero, Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro, vestindo armadura e comandando pessoalmente o seu exército. Seu sucessor Leão X (1513-1521) teria dito ao ser eleito: "Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo". Os dois papas foram os ocupantes do trono de Pedro na época em que Lutero iniciou seu ministério como sacerdote a serviços do catolicismo romano. Antes de Lutero, porém, houve gente que buscou, de alguma forma, reformar alguns aspectos da Igreja. Vamos conhecer os pré-reformadores no próximo fascículo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

17. HETERODOXIAS DO CATOLICISMO

“Olhai, pois, por vós e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue.” (Atos 20.28)

Lembrando-nos de que, segundo o dicionário, ortodoxia é o cumprimento fiel, exato e inabalável de uma doutrina religiosa e a ação de conformidade com essa doutrina, podemos afirmar que a ortodoxia praticada pela Igreja Inicial em Jerusalém era aquela deixada oralmente pelo próprio Cristo e vivida pelos seus seguidores, sob a liderança dos doze apóstolos que a haviam aprendido do próprio Senhor da Igreja. Não havia na época apostólica nenhuma heterodoxia ou heresia, sendo que a primeira que se conhece é apontada pelo livro de Atos, mais tarde chamada pela história de Ebionismo. Saindo do ambiente e da cultura judaica, no entanto, os embates contra a ortodoxia cristã se iniciaram e, ao longo do tempo, após cerca de três séculos, desembocaram em um “outro evangelho”, com características diferentes daquele procedimento inicial. Foi o início do Catolicismo, difícil de se precisar quando começou, mas que já demonstrava alguns indícios de desvios desde os séculos iniciais.
Historicamente, as heterodoxias da Igreja Católica estão diante de nós praticamente desde o século V, pois uma série de coisas não contidas na Bíblia nem praticadas pela Igreja Primitiva foram considerada dogmáticas segundo a sua compreensão católica. Vamos discutir algumas dessas heterodoxias, com base nos textos do Catecismo da Igreja Católica (CIC), que envolveu os papas João Paulo II e Bento XVI para ser elaborado e que é hoje usado como instrumento de ensino dos dogmas e procedimentos da Igreja. Com base na parábola do joio e do trigo, somente Deus pode separar o que é dele daquilo que não é, já que, além do Catolicismo, outros grupos cristãos têm hoje doutrinas e procedimentos questionáveis à luz das Escrituras Sagradas; por isso nos referimos às mudanças como heterodoxias.
Ao estudar a história da Igreja, precisamos deixar de lado certos preconceitos arraigados em nós ao longo do tempo, como o que acontece com a palavra “católico”, por exemplo. Vindo de dois elementos gregos (kata = segundo, conforme + hólos = todo), a palavra católico está presente nos escritos da história da Igreja desde o século II, numa ideia de universalidade que procura abarcar o todo de um movimento que enfrentava, já naqueles dias, muitas discrepâncias quanto a ideias, crenças e práticas. Talvez tenha surgido o termo como oposição a Marcion e sua igreja herética antissemita ligada ao gnosticismo, na qual o cristianismo se desvinculava de suas origens judaicas, numa época quando a Igreja Cristã autêntica não tinha ainda a estrutura de comando que acabou surgindo e levando o nome geral de católica.
Ao consultar o CIC, deparamos algumas vezes com a expressão “ao longo dos séculos, a Igreja tomou consciência de que...”, ou algo semelhante, que normalmente introduz uma das heterodoxias. Muitos foram os acréscimos e as modificações havidas, mas vamos examinar algumas delas.
Missa e sacramento são dois dos aspectos de heterodoxia do Catolicismo. Segundo o CIC, temos as seguintes afirmações: “Toda a vida litúrgica da Igreja gravita em torno do sacrifício eucarístico e dos sacramentos.” “Fieis à doutrina das Sagradas Escrituras, às tradições apostólicas e ao sentimento unânime dos padres, professamos que os sacramentos da nova lei foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo”. “A Igreja afirma que para os crentes os sacramentos são necessários à salvação.”
Dentro da missa, a transubstanciação é um dogma que tem dividido igrejas, mesmo no Protestantismo. Embora muitas denominações tenham voltado para o aspecto simbólico do pão e do vinho (que cremos ter sido o que Cristo deixou para seus discípulos seguirem até que ele volte), há denominações e grupos protestantes que não se desvencilharam totalmente da transubstanciação, embora se refiram a ela com outros nomes e de outras formas. Sobre a transubstanciação, temos as seguintes afirmações:
“A consagração (dos elementos) produz três efeitos maravilhosos: a. as essências do pão e do vinho deixam de existir; b. as aparências do pão e do vinho se mantêm, embora não mais conectados com sua realidade interior; c. as essências dos verdadeiros corpo e sangue de Cristo vêm a existir sob a aparência do pão e do vinho.” Tudo isto acontece e constitui a “eucaristia”, dentro do sacrifício da missa. O sentido é o de que o sacrifício de Cristo é renovado pela Igreja a cada missa rezada.
Outro aspecto que precisamos considerar é o da penitência. Dela, podemos deduzir que a fé católica no sacrifício de Cristo como propiciação pelos nossos pecados diante de Deus não é tão completa como a maioria das igrejas evangélicas crê, pois o pecador precisa complementar a graça da salvação através de penitências que lhe são impostas pelo sacerdote, que ouve a sua confissão de pecados; são somente esses sacerdotes “que recebem da autoridade da Igreja a faculdade de absolver” é que “podem perdoar os pecados em nome de Cristo.” A penitência pode ser aceita na forma de “uma oração, uma oferta em obras de misericórdia, um serviço ao próximo, privações, sacrifícios ou aceitação paciente da sua cruz.”
Como consequência da penitência, a indulgência representa diante de Deus a remissão das penas do pecado, administrada pela Igreja ao retirar do “tesouro das satisfações (méritos) de Cristo e dos santos” aquilo que for necessário para que tal perdão aconteça. Se, porém, alguém morrer não plenamente justificado diante de Deus, passará por um período de purificação no Purgatório, para que seus pecados sejam purgados e essa pessoa esteja em condições de entrar na alegria do céu. Tal período no Purgatório poderá ser diminuído se houver por parte do fiel em vida ou após a sua morte a adesão às indulgências, sacrifícios, contribuições financeiras, peregrinações, atitudes, enfim, que resgatem do “tesouro das satisfações de Cristo e dos santos” a quantidade de méritos necessária para a abreviação da pena.
O Purgatório é explicado da seguinte forma: “Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do céu. A Igreja denomina purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados.” Embora o Catolicismo já o aceitasse anteriormente, o dogma do purgatório foi oficializado nos Concílios de Florença (1439) e de Trento (1545-1563), o primeiro menos de um século antes de Lutero e o outro acontecido por causa das Reformas Protestantes.
O assunto seguinte, a indulgência, tem ligação direta com a Reforma Protestante. O CIC assim a explica: “A indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa (remissão) que o fiel bem-disposto obtém, em condições determinadas, pela intervenção da Igreja que, como dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações (méritos) de Cristo e dos santos”. (...) "A indulgência é parcial ou plenária, conforme liberar parcial ou totalmente da pena devida pelos pecados." (...) Todos os fiéis podem adquirir indulgências (...) para si mesmos ou aplicá-las aos defuntos.
Mariolatria, intercessão de santos, sacramentos, oração pelos mortos e tantas outras coisas poderiam ser aqui abordadas. Joio e trigo: Jesus orientou seus seguidores para que deixassem os dois crescerem sem tentar separá-los. É difícil não julgar, numa época em que tanto joio tem pregado o evangelho, aparentemente até com sucesso. Não nos esqueçamos, porém, de que a conversão a Cristo é individual e obra do Espírito Santo de Deus, pois é ele quem convence o homem do pecado, da justiça e do juízo. Cabe a cada organização cristã desenvolver sua ortodoxia, buscando um cumprimento fiel, exato e inabalável da doutrina religiosa ensinada por Jesus Cristo durante o seu ministério neste mundo, e que foi enfatizada e praticada por seus apóstolos e seguidores. Busquemos cada vez mais viver e divulgar o evangelho apostólico, pois é ele que precisa ser levado a todas as nações até os confins da terra.
O espírito guerreiro dos bárbaros germânicos influenciou o Cristianismo, gerando até o episódio das cruzadas, assunto a ser discutido no próximo segmento.

16 A IGREJA E A HERESIA

“... ainda que nós mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro evangelho além do que vos tenho anunciado, seja anátema.” (Gálatas 1.8)

Antes de discutirmos o problema da heresia em si, vamos a algumas definições. Ortodoxia, segundo o dicionário do Aurélio, é o cumprimento fiel, exato e inconcusso (inabalável) de uma doutrina religiosa; é ainda conformidade com essa doutrina. Num sentido mais extremo, é a intransigência a tudo quanto é novo, a rejeição de novos princípios ou ideias. O antônimo de ortodoxia é heterodoxia, que se define como oposição a ou diferença de algum padrão adquirido, como a Bíblia, por exemplo. Heresia é definida pelo dicionário como doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé (grifo nosso). Nesta multiplicidade atual de visões cristãs, cabe aqui a pergunta: “Qual igreja?”
No seu livro “Heresia”, o autor anglicano Alister McGrath se lembra de hairesis no grego, que significa escolher ou escolha. Portanto, como termo neutro, não pejorativo, na origem, heresia significava apenas um ato de escolha. Aprofundando o significado da palavra, McGrath afirma ainda que heresia é a “crença cristã que, mais por acaso do que por desígnio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cristã.” Diz mais ainda o citado autor: “Heresia não significa incredulidade no sentido estrito do termo, mas uma forma de fé que, no final das contas, é considerada subversiva ou destrutiva e, assim, leva indiretamente ao estado de incredulidade.
O cristianismo foi visto inicialmente como seita (ou seja, escolha, heresia) dentro do judaísmo, o qual era considerado como religio licita, (ou seja, religião legal) dentro do império, fato que livrou a Igreja de perseguições iniciais por parte de Roma. Pode-se, portanto, concluir, com base no que já foi afirmado, que o conceito de heresia e seus termos correlatos é amplo, relativo a diferentes grupos cristãos, já que cada um deles tem a sua ortodoxia.
Tendo surgido e crescido inicialmente na cultura judaica, enquanto a Igreja não se sentiu pressionada pela perseguição a sair de Jerusalém e assim levar o evangelho a outras culturas dentro do Império Romano, talvez o problema da heresia não tivesse sido sentido. O  verso de Paulo citado no início foi um alerta aos cristãos da Galácia, um território gentio, e se estende até nós hoje.
O pensamento do mundo moderno com relação à heresia pode ser deduzido da seguinte frase de Will Herbert: “Hoje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um herege, senão ter mente original, ser um homem que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?”  E nós, cristãos, será que conhecemos devidamente a heresia para a reconhecermos e a combatermos?
Procurando conhecer mais de perto o assunto, vamos partir de um movimento que foi definitivo no início da Igreja e que reaparece com força no século XXI: o Gnosticismo. Sobre o assunto, assim se expressou W. Walker: “É preciso distinguir entre o fenômeno geral do gnosticismo em si mesmo e as formas definidas e particulares que ele assumiu através da associação com o cristianismo. Nem todo o movimento gnóstico era cristão e o movimento ou tendência religiosa que ele representa existiam independentemente da igreja, ainda que ele não preceda em muito o cristianismo. O que eles têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria essência.” Paulo alertou Timóteo pera que guardasse o depósito da fé que lhe havia sido confiado, evitando as conversas vãs e profanas e “as oposições da falsamente chamada ciência.” Embora o nome ainda não existisse na sua época, com certeza ele se referia ao gnosticismo.   
Partindo de Shelley, Cairns e Walker, três historiadores, vamos definir alguns termos dentro do gnosticismo. Shelley apresenta um esquema de avaliação do movimento que mostra no mundo superior um “Pai Sem Nome” espiritual e bom, que contrasta na parte inferior com o “Mundo Material e Mau”, e entre os dois, o “Pleroma”e o “Kenoma”. Vagando entre eles estão os “Eons” (ou Aeons), ou seja, as emanações ou os mediadores (“História do Cristianismo ao alcance de todos”, Bruce L. Shelley). Pleroma é o mundo original, mundo divino de coisa-espírito, que é denominado a plenitude. Kenoma é o mundo inferior, mundo material, que algumas vezes é chamado de o vazio.
As emanações (ou Eons) são seres com menos espírito e uma quantidade de matéria cada vez maior: Pistis (fé), Sophia (sabedoria), Anthropos (homem) e Demiurgo são exemplos de Eons. O demiurgo tinha espírito suficiente em si, possuindo poder criador e dispondo de elementos para criar o mundo material, que era mau; o demiurgo não podia criar do nada (ex nihilo), mas somente a partir de um caos preexistente. No chamado “gnosticismo cristão”, o Javé do Antigo Testamento era identificado como um demiurgo, demonstrando os gregos total antipatia por ele. Sobre a mesma linha de pensamento, W. Walker acrescenta: “Querendo libertar as almas aprisionadas no mundo material, Sophia rebela-se contra Demiurgo, e o verdadeiro Deus inefável envia aos homens seu filho mais querido, o eon Chirstós (ou Cristo), que desce ao mundo material com o objetivo de transmitir ‘Gnosis’ (conhecimento) às almas para que elas tenham consciência de sua identidade divina e partam para o Pleroma, libertando-se do jugo e da escravidão do Demiurgo.” Para o Gnosticismo, segundo Cairns, “a tarefa de Cristo era ensinar uma gnose ou conhecimento especial que ajudaria o homem a se salvar por um processo intelectual”.
Sabedoria, filosofia, ciência, racionalidade eram conceitos muito caros aos gregos, e houve cristãos que se encantaram com eles no início da história da Igreja, ao ponto de tentarem adequar a filosofia grega ao cristianismo. Alguns até julgavam que, no passado, os filósofos gregos haviam ido buscar seus conceitos éticos no Pentateuco, em Moisés e no Velho Testamento.
Dentro do gnosticismo mais propriamente, o Valentianismo e o Marcionismo foram os movimentos mais difíceis de combater para o cristianismo inicial, a partir de meados do século II. Valentino talvez tenha sido discípulo de Teudas, que foi discípulo de Paulo. Márcion rejeitava o judaísmo e criou um “cânon neotestamentário” próprio, apenas com parte do evangelho de Lucas e as epístolas gerais de Paulo. Na época, a Igreja não dispunha ainda a organização que viria a ser desenvolvida, e os dois líderes se separaram voluntariamente das demais congregações cristãs, criando “igrejas” para si próprios. A Igreja geral pareceu perceber a necessidade de se preocupar com o assunto e seus líderes passaram a refletir sobre a seleção de textos que deveriam ser aceitos como inspirados. Levou praticamente três séculos, mas finalmente chegou-se ao cânon definitivo do Novo Testamento. Como heresias clássicas iniciais, podemos citar:
  • Ebionismo (um modelo judaico para Jesus de Nazaré, segundo McGrath), relatado inicialmente em Atos 15;
  • Docetismo (a humanidade de Jesus de Nazaré), originário de Cerinto;
  • Arianismo (a identidade de Cristo), iniciado por Ário na época de Constantino;
  • Donatismo (a natureza da Igreja), de Donato, no norte da África;
  • Pelagianismo, (a natureza humana e a graça divina), heresia criada por Pelágio.
As heresias iniciais surgiram no período de perseguição da Igreja; heresia e ortodoxia eram na época conceitos importantes apenas dentro das comunidades cristãs, às vezes perseguidas. A partir de Constantino e do Arianismo, heresia e ortodoxia passaram a ser preocupações políticas do império, com importantes implicações legais, já que o Estado começou a se envolver profundamente nas questões teológicas.
Vivendo numa época na qual “as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes”, segundo Will Herbert, podemos afirmar que o gnosticismo hoje está em moda. Cabe à Igreja procurar conhecer bem esses assuntos, para que possa estar preparada para ser sal e luz, numa sociedade que admira mais a exceção do que a regra, o heterodoxo e herético do que o ortodoxo.
Sobre as congregações cristãs, precisamos conhecer as heterodoxias que foram modificando a ortodoxia inicial apostólica, desenvolvidas pela Igreja Católica, assunto do próximo fascículo.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

15. A IGREJA E A VIDA MONÁSTICA

“Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou.” (João 17.15-16)

 Qual é a vida que agrada a Deus? Jesus reconheceu que não seria fácil ser seu discípulo e viver neste mundo, pois ele mesmo afirmou que, no mundo, teríamos aflições. No entanto, ele não incentivou ninguém a viver isolado da sociedade, mas afirmou que deveríamos ser “sal da terra” e “luz do mundo”. Como estar no mundo e não ser do mundo tem sido um conflito na vida dos seguidores de Cristo. Houve, porém, um momento na história no qual pessoas começaram a se afastar da sociedade, a qual se achava cada vez mais corrompida (mesmo dentro da Igreja), e a viver isoladamente. Achavam que o cristão verdadeiro se afasta do mundo, abstendo-se do casamento, da família e dos prazeres mundanos. Com isso, esse movimento lançou um novo estilo de se viver o Cristianismo, a vida monástica.
Eremita, ou ermitão, é um indivíduo que vive em um lugar deserto, isolado, geralmente por motivo de penitência ou religiosidade. O termo provém de uma palavra latina que significa "solitário". Os eremitas buscavam refúgio em locais remotos e desabitados, como montanhas e florestas, sua aparência era descuidada, vestiam-se muito pobremente, usavam barba comprida e andavam de pés descalços. Alguns ficavam em pé por horas enquanto oravam e chegavam até mesmo a viver no topo de pilares. O objetivo dos eremitas era o de levar uma vida que imitasse a de Cristo e a dos Apóstolos. O eremita praticava essencialmente a humildade, a paciência, o silêncio, a contemplação, mas tudo levado ao extremo, numa existência que se baseava numa penitência austera e num testemunho da sua fé através da ascese, por vezes radical.
Com a conversão do imperador Constantino em 312, a situação da igreja mudou drasticamente. Os cristãos deixaram de ser minoria perseguida e tornaram-se membros de uma religião que desfrutava de apoio oficial. Grandes multidões começaram a entrar na igreja, a fé se transformou em uma coisa fácil e a sinceridade foi prejudicada. Com isso, muitos optaram por afastar-se do mundo, vivendo isolados da sociedade. Vamos começar conhecendo o primeiro eremita.
Antão, forma familiar de Antônio, nasceu no Egito, provavelmente por volta do ano 250, em uma família próspera, cujos pais morreram quando ele tinha cerca de vinte anos, deixando-lhe toda a herança. Baseado no conselho dado por Jesus ao jovem rico na Bíblia, Antão doou terras, vendeu propriedades e repartiu o dinheiro entre os pobres. Começou a comer uma única refeição por dia e passou a dormir no chão. Antão foi viver em uma caverna, local no qual se sentia assediado por demônios de várias formas. A tentação de voltar ao mundo dos prazeres sensuais era constante, mas Antão persistia em sua luta. Mudando-se para um forte abandonado, onde viveu vinte anos sem ver ninguém, ele recebia comida jogada por cima do muro. Começou, então, a ter seguidores, pessoas que buscavam a sua orientação, tornando-se conselheiro espiritual. Antão morreu com cerca de 105 anos, com aparente vigor físico e mental. Embora insistisse para ser enterrado secretamente, logo um culto surgiu ao redor de sua sepultura. Atanásio escreveu uma obra chamada Vida de Antão, na qual ele é retratado como “o monge ideal, que podia realizar milagres e discernir entre espíritos bons e maus”. Tornou-se um santo do catolicismo.
Monge é uma pessoa devotada à vida monástica e clausural. Existentes em várias religiões do mundo, o monge e a vida monástica estão presentes no Cristianismo desde os primeiros séculos. Os monges católicos, que podem ser clérigos ou leigos, seguem as regras de uma determinada ordem religiosa monástica e residem em mosteiros. Os monges seguem uma vida de desapego aos bens materiais e de contemplação e serviço a Deus. A prática das comunidades de monges que viviam juntos começou com Pacômio, um jovem companheiro de Antão. Como Antão, a maioria de seus seguidores também foi eremita. Por volta do ano 320, Pacômio deu origem ao monasticismo comunal. 
A verdadeira força por trás do monasticismo europeu foi Bento de Núrsia. Nascido no século VI em uma família italiana de classe alta, ainda jovem foi estudar em Roma, cidade que ele considerava como imoral e frívola. Aborrecido com isso, Bento partiu e se tornou eremita, tendo adquirido grande reputação por sua espiritualidade: famílias traziam seus filhos para que fossem treinados por ele na vida cristã. Tornou-se abade, mas enfrentou problemas, tendo que fugir. Por volta do ano 529, Bento se mudou para Monte Cassino, onde mandou demolir um templo pagão para construir um mosteiro em seu lugar. Bento é lembrado não somente pelo mosteiro, mas por causa de “a Regra”, conjunto de normas que deixou para governar aquele lugar. O mosteiro para Bento era uma comunidade autocontrolada e autossustentada, com seus campos e oficinas. Era uma "fortaleza espiritual", para assegurar que os monges não precisassem ir a qualquer outro lugar para satisfazer as necessidades da vida. Roupas, comida e mobília eram manufaturadas dentro do confinamento da comunidade. Após um noviciado de um ano, os que persistissem fariam os três votos que o desligariam completamente do mundo: pobreza, castidade e obediência. Bento criou algo que serviu para orientar comunidades monásticas há vários séculos e sua criação ainda está em vigência atualmente.

Outro mosteiro surgiu quando a igreja enfrentava grandes dificuldades. Numa época de lutas políticas, quando líderes da igreja buscavam poder e terras, William, o Pio, duque de Aquitânia, fundou um mosteiro em Cluny, cidade localizada na Borgonha, século X, local que exerceu profunda influência na cristandade. Era uma sociedade independente, livre das lutas de poder do império e sob a proteção do papa. O mosteiro seguiria a Regra estabelecida por Bento de Núrsia no século VI: pobreza, castidade e obediência. Uma liderança capacitada fez com que Cluny funcionasse adequadamente, multiplicando a ideia em outros lugares, como na França, Itália e Alemanha. Em um movimento de reforma, Cluny foi o lugar que exerceu a maior influência no cristianismo ocidental, liderando cerca de dois mil mosteiros por volta do ano 1110. Cluny teve seu apogeu e seu declínio, sendo mais tarde restaurado pela ordem cisterciense.
A Ordem Cisterciense se origina na Abadia de Cister, em Saint-Nicolas-lès-Cîteaux, na Borgonha, em 1098. Seus fundadores era monges que haviam deixado a congregação monástica já decadente de Cluny para retornar à antiga regra beneditina. A ordem teve um papel importante na história religiosa do século XII, impondo-se em todo o Ocidente com sua organização e autoridade. Restaurando a regra beneditina, a ordem cisterciense teve em Bernardo de Claraval (1090-1153), homem de excepcional carisma, o grande nome do movimento. 
Outros movimentos foram surgindo na história, como os franciscanos, jesuítas e outros grupos, buscando na vida monástica a solução para o problema do pecado do homem. Os eremitas achavam que o mal estava fora da pessoa humana, no entanto, o próprio Antão era assaltado por visões e tentações mesmo no seu isolamento, mostrando que o mal está dentro de cada ser humano, porque “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”. Jesus não incentivou o isolamento, mas a ação no meio da sociedade, sendo sal e luz para os demais. Com o advento da Reforma Protestante, os evangélicos deixaram de lado as práticas de conventos e abadias em suas denominações. No catolicismo, muitos dos movimentos e das ordens estudadas se mantêm até hoje. No entanto, o imperativo continua: como igreja, espalhar a mensagem do evangelho a toda criatura, e como indivíduos, influenciar a sociedade sendo sal e luz.
Desde que surgiu na cultura judaica, o Cristianismo se defrontou com ideias opostas, principalmente a elaborada filosofia grega que dominava o Império Romano no qual a Judeia se inseria. Pais da Igreja foram importantes para definir e defender a fé cristã nos primórdios, mas o surgimento de “outros evangelhos” foi inevitável. A Igreja e a heresia será o próximo assunto a ser por nós abordado.

14. A IGREJA E O IMPÉRIO

“As nações se embraveceram; os reinos se moveram; ele levantou a sua voz e a terra se derreteu.” (Salmo 46.6)

Jesus disse aos seus discípulos, pouco antes do ano 30 AD: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O verso bíblico citado se insere num contexto em que perguntaram a Jesus se era lícito pagar impostos a Roma. Na resposta, Cristo deixa claro que há uma nítida diferença entre o reino dos homens e o Reino de Deus, cada um com seu governante máximo, que deve receber o que lhe é devido.
Com a prática da vivência cristã por parte da Igreja, lentamente há um deslocamento de autoridade no Reino Celestial (na terra representado pela Igreja) de Deus para o Papa, líder máximo criado pelos homens a partir de uma interpretação errônea do que Cristo havia dito a seus discípulos numa outra ocasião. Assim, após a perseguição, a Igreja começou lentamente a colocar um “vigário de Cristo”, um substituto do Salvador, presente sobre a terra, na pessoa do Bispo de Roma e de toda a hierarquia eclesiástica criada. O verso citado no início, que opunha César a Deus, passou a opor César ao Papa. Foi aí que surgiu o “cesaropapismo”.
A partir do Édito de Milão, em 313, além de reconhecer o cristianismo como religião legal e com liberdade de culto, Constantino assumiu uma postura magisterial no âmbito social, cultural e religioso do império. Dessa forma, ele se opôs a qualquer discordância teológica no cristianismo, religião que assumira como forma de unificar politicamente o Império. Nessa linha político-religiosa, o imperador convocou o I Concílio de Niceia, em 325, para solucionar a questão do arianismo. Em um processo que se acentuou nas décadas seguintes, o cristianismo se tornou a religião oficial do império em 380, no governo de Teodósio. O fim do Império Romano do Ocidente em 476 deteve um processo de controle da Igreja pelo Estado no Ocidente, o qual vinha se fortalecendo com o tempo. 
Cesaropapismo (substantivo composto formado de dois outros, “César” e “Papa”) foi um sistema de relações entre a Igreja e o Estado em que ao chefe de Estado (César) cabia a competência de regular a doutrina, a disciplina e a organização da sociedade cristã, exercendo poderes tradicionalmente reservados à suprema autoridade religiosa (Papa), unificando as funções imperiais e pontifícias em sua pessoa. Daí decorre o traço característico do cesaropapismo, que é a subordinação da Igreja ao Estado. A ideologia do cesaropapismo assenta-se na ideia de a política imperial querer usurpar a autoridade conciliar e o poder papal de decisão sobre a Igreja. Em sua história milenar, o Império Romano do Oriente acentuou e concretizou o cesaropapismo ao extremo. O imperador fez valer seu poder sobre a Igreja emanando normas, sancionando decretos dos concílios ecumênicos, convocando os tribunais eclesiásticos e determinando sua competência, cuidando da exata aplicação das leis canônicas, controlando a correta administração dos bens da Igreja e nomeando os titulares dos ofícios eclesiásticos. No Ocidente, a Igreja tinha a obrigação de informar ao imperador ou a seu representante na Itália o nome do papa eleito.
Carlos Magno, ao se constituir como líder do Império Carolíngio, no século VIII, assumiu uma relação muito estreita com a Igreja Católica. Primeiro lhe deu o território do centro da Itália, o Patrimônio de São Pedro, em 754, que assegurou ao papa o poder temporal direto sobre a região. O papa Leão III, em 25 de dezembro de 800, conferiu o título de Imperador a Carlos Magno. O Imperador reviveu um sistema de relações entre o Estado e a Igreja, no qual ele assumiu o poder legislativo, jurídico e administrativo sobre o território pontifício; Carlos Magno reivindicou, antes mesmo de ser coroado imperador, o poder dogmático; em carta ao papa Leão III em 796, ele afirmou: "Quero não só defender com as armas a Igreja de seus inimigos externos, mas também fortificá-la em seu interior através do maior conhecimento da doutrina católica". Carlos Magno nomeou, com raras exceções, todos os bispos e abades de seu reino, exigindo inclusive a participação pessoal deles nas guerras.  
Em 962, o rei germânico Oto I foi coroado imperador do Sacro Império Romano-Germânico e novamente teve início no Ocidente um período de intervenção do Estado na Igreja, com o intuito de favorecer o poder do imperador. Os imperadores germânicos então nomeavam bispos e abades, que prestavam juramento de fidelidade na condição de vassalos. Desregramento do clero, que provocou um grande movimento de reforma eclesiástica, foi a consequência. Na época, o imperador nomeou e depôs vários papas na busca de apoio político.
O Sacro Império Romano foi uma tentativa de reviver o Império Romano do Ocidente, cuja estrutura política e legal sucumbiu a partir das invasões do século V, substituída por reinos independentes governados por chefes germânicos. O Sacro Império Romano-Germânico (em alemão Heiliges Römisches Reich) constituiu-se na união de territórios da Europa Central durante a Idade Média, durante toda a Idade Moderna e no início da Idade Contemporânea, sob a autoridade do Sacro Imperador Romano-Germânico. Embora Carlos Magno seja considerado o primeiro Imperador do Sacro Império, em 800, a linha contínua de imperadores começou apenas com Otto I em 962. O último imperador do I Sacro Império foi Francisco II, que abdicou e dissolveu o império em 1806, durante as Guerras Napoleônicas. Foi principalmente nesse longo período que os poderes de César e do Papa estiveram em litígio, com o predomínio ora de um, ora do outro. 
O predomínio do poder imperial sobre o eclesiástico sofreu uma inversão principalmente nos tempos de Inocêncio III, dado o poder acumulado em suas mãos na sua época. Segundo ele, o papa era superior ao rei em virtude da autoridade recebida de Deus, e por isso tinha o poder de excomungar os reis e de depô-los. Inocêncio dizia que Deus tinha posto o sol e a lua para iluminar o dia e a noite. O sol representava a autoridade pontifícia, enquanto a lua era a autoridade imperial. “Por isso, a lua recebe a sua luz do sol e é, portanto, inferior ao sol, tanto na grandeza como no calor, tanto na sua posição como nos seus efeitos. Do mesmo modo o poder régio deriva a sua dignidade da autoridade pontifícia e quanto menos se submete a ela, tanto menor luz recebe dela. Mas quanto mais lhe se submete, tanto mais aumenta o seu fulgor.” No final do século XII, era o Papa quem nomeava os reis. 
O I Império dissolveu-se em 1806, durante as Guerras Napoleônicas, tendo sido revitalizado como II Império entre 1871 e 1918, com a participação do chanceler Otto von Bismarck, que projetou sob regime monárquico um moderno estado nacional, de governo central com soberania sobre todo o seu território. O espirito bélico de dominação acabou por envolver a Alemanha na Primeira Guerra Mundial, da qual o país saiu derrotado, em meio a uma grave crise econômica, social e institucional, com perda significativa de territórios e de todo o seu império colonial. O III Império (ou III Reich em alemão), talvez o de mais triste memória, levou ao nazismo de Adolf Hitler, eleito Chanceler da Alemanha em 30 de janeiro de 1933. O resultado de tudo isso foi a II Guerra Mundial, de 1939 a 1945, evento que deixou milhões de mortos, muita destruição, massacre de judeus e muita tristeza no mundo todo. Resumindo a história de maneira sarcástica, para o filosofo francês Voltaire, em 1756, o Sacro Império Romano parecia uma "aglomeração", que não era "nem sagrada, nem romana, nem um império". 
Duas Guerras Mundiais no século XX foram consequência de algo iniciado na Idade Média, quando os líderes cristãos resolveram juntar o político ao religioso, o temporal ao eterno, o material ao espiritual, contrariando o que Cristo deixou como orientação quanto ao assunto: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. O mesmo Senhor havia alertado seus discípulos, dizendo “meu Reino não é deste mundo”, mostrando que não era um líder político que tivesse vindo restabelecer o reino a Israel. Ensinava ele que todos aqueles que viessem a lidar no Reino de Deus neste mundo, na Igreja por ele edificada, deveriam saber separar as coisas devidamente. Infelizmente, ao longo da história do Cristianismo, os cristãos não têm sabido discernir entre os absolutos de Deus e os relativos do homem. Por estas e por outras coisas, muitos cristãos fugiram para a vida monástica, assunto a ser abordado no próximo fascículo.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

13. JUDAÍSMO, CRISTIANISMO, ISLAMISMO

“... será que Deus é somente Deus dos judeus? Será que não é também Deus dos não judeus? Claro que é!”  (Romanos 3.29)


Jerusalém tem sido, historicamente, palco de muitos interesses e de muitas batalhas. Nos nossos dias, judeus, cristãos e muçulmanos lutam pela posse daquele território, bem como de toda a região do Oriente Médio onde a cidade se insere, numa guerra que parece não ter fim. Como foi que tudo isto começou? Qual é a origem dessas três religiões?
O Judaísmo tem uma Escritura Sagrada chamada Antigo Testamento, onde lemos que o Senhor Jeová chamou um homem no passado, tirou-o da terra de Ur dos Caldeus, e fez com ele uma aliança: “... far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome, e tu serás uma bênção” (Genesis 12.2). Esse fato deve ter acontecido por volta do ano 1921 a.C. Passou-se uma década e Abraão e Sara, sua esposa, continuavam sem filhos. Sara, evocando um costume da terra, convenceu Abraão a ter um filho com sua escrava egípcia Agar, e assim nasceu Ismael, por volta do ano 1910 a.C. O plano de Deus, porém, era outro e cerca de doze anos após, a estéril Sara ficou grávida e Isaque, filho legítimo do casal, nasceu por volta do ano 1896 a.C. Através de Isaque vieram Esaú e Jacó, sendo que o último teve o nome mudado para Israel, dando origem aos “israelitas”, ou seja, seus descendentes através de seus doze filhos. O judaísmo surgiu da aliança de Deus com Abraão. 
O povo escolhido por Deus, abençoado e cuidado por ele, foi rebelde e idólatra ao longo da história. Deus então, “na plenitude dos tempos”, quando tudo estava preparado no mundo, enviou seu filho Jesus Cristo, o Messias, para através dele estabelecer com o homem uma nova aliança. Era o surgimento da Igreja, por volta dos anos 30 d.C., que recebeu a incumbência de propagar a mensagem das boas novas de salvação em Cristo a toda a humanidade. Surgiu então o Cristianismo.
Voltando à Era Patriarcal, quando Isaque foi desmamado, Abraão despediu Agar e seu filho Ismael de sua família e comitiva, segundo imposição de Sara e conforme orientação de Deus, tendo sido mãe e filho abandonados pelo homem, mas preservados com vida e abençoados por Deus. Informa o livro de Gênesis que Ismael “habitou no deserto de Parã e sua mãe o casou com uma mulher da terra do Egito”. Com a separação entre Isaque e Ismael, bem como de seus descendentes, começou a saga entre os árabes e os judeus, a qual existe até hoje. O que aconteceu com Ismael e seus doze filhos não é muito conhecido. O fato é que, em tempos mais modernos, os árabes têm a sua história vinculada à Península Arábica, onde inicialmente se fixaram, em uma região formada por desertos, situação que levava seus habitantes a uma vida nômade, em busca dos oásis presentes ao longo do território. Conhecidos como beduínos, essa parte do povo árabe era caracterizada pela sua religião politeísta e pela criação de animais. Nas regiões litorâneas da Península Arábica, existem hoje centros urbanos e a prática de uma economia agrícola mais complexa. Entre as cidades da região, destacava-se Meca, grande centro comercial e religioso dos árabes e um centro de animismo e idolatria desde um passado distante.
Regularmente, desde épocas remotas, os árabes se deslocavam para a cidade de Meca, a fim de prestar homenagens e sacrifícios às várias divindades invocadas naquele local. O vale da Mina, o monte Ararat, o poço sagrado de Zen-Zen e a Caaba (principal templo sagrado onde era abrigada a Pedra Negra) eram os lugares sagrados mais procurados. A Caaba continua sendo objeto de veneração islâmica, uma relíquia muçulmana, sendo o centro espiritual do mundo islâmico e de todos os atos piedosos, sobretudo as orações, que se dirigem para ela. Uma vez ao ano, milhões de árabes vão em peregrinação a Meca. 
O Islamismo surge com um homem na Arábia chamado Maomé. Nascido em Meca, em 570, Muahammad ben Abdullah ben Abdul Mutlib ben Maximera era da tribo dos Coraixitas. Com 6 anos de idade, Maomé ficou órfão, tendo sido criado pelo tio, tendo se dedicado inicialmente a atividades de pastoreio e comércio. Até cerca de 35 anos de idade, Maomé foi um árabe comum. Visitando a Síria e a Palestina, teve alguns contatos com judeus e cristãos, dos quais teria recebido suas concepções monoteístas. Teve contato também com o paganismo politeísta da região, levando-o a criar um ecletismo religioso. Maomé tinha habilidade comercial, política, militar e legislativa, além da religiosa. Ele casou-se com uma rica viúva chamada Cadija, casamento que lhe proporcionaria uma estabilidade financeira que permitiu a ele um bom desenvolvimento intelectual para assim estruturar o seu sistema religioso. Com Cadija, Maomé teve uma filha, Fátima, tendo sido casado também com outras mulheres. Maomé demonstrava inicialmente descontentamento com as condições sociais e morais existentes entre seu povo. 
Entre os 40 e os 52 anos de idade, ele sentiu-se chamado pelo anjo Gabriel (o mesmo anjo que anunciou o nascimento de Jesus para Maria) a pregar a religião de um Deus absoluto, criador, poderoso e juiz do mundo. Sua mensagem de monoteísmo e juízo futuro e sua denúncia da idolatria e do infanticídio tiveram pouca repercussão em Meca, tendo entrado em contradição com as crenças tradicionais de sua tribo. Aos 50 anos, em 620, segundo o Alcorão, Alá confirmou o seu chamado, levando-o à noite para Jerusalém, para o Domo da Rocha, onde Maomé teria conversado com Jesus, Moisés e Abraão. Aos 52 anos, com apenas um companheiro, ele fugiu de Meca para salvar sua vida, indo para Yatrib (atualmente Medina, "a cidade do profeta"), 370 quilômetros ao norte de Meca. Até os 60 anos de idade, Maomé estabeleceu ali o governo de Alá, implantando todo um sistema religioso, político e social com base nos princípios da nova fé. Lutas surgiram, fortalecendo-o como líder, quando adotou novas práticas na sua política e modo de viver: ele instituiu postura na oração, jejum no Ramadã, atitude quanto aos judeus e poligamia. Tendo tomado a cidade de Meca, estendeu a sua soberania política sobre toda a Arábia. Morreu em Medina em 632, após uma rápida febre, nos braços de Aisha, a esposa favorita do seu harém. Maomé não nomeou seu sucessor, porém deixou uma excelente organização político-religiosa, baseada na doutrina islâmica de seu livro, o Alcorão, que foi publicado em 650. Segundo a tradição muçulmana, após falecer em Medina, o Profeta foi transportado para Jerusalém, de onde ascendeu ao Céu. No lugar da ascensão, os muçulmanos construíram uma mesquita no Domo da Rocha, mantida até hoje. Desde aquela época, os árabes foram-se convertendo ao islamismo, que se expandiu bastante entre os séculos VII e VIII, difundindo a crença por várias regiões do norte da África, da Península Ibérica e algumas partes do mundo oriental.
Tal como o Judaísmo e o Cristianismo, o Islamismo é uma religião monoteísta, adorando a um só Deus. Existem semelhanças e diferenças entre o Alcorão e a Bíblia judaica e cristã, pois Maomé certamente se baseou nas Escrituras Sagradas para criar o seu livro. Segundo o Alcorão relata em 114 capítulos, Adão e Eva foram o primeiro casal muçulmano criado por Deus, mencionando o livro personagens bíblicas como Abraão, Isaque, Jacó e seus filhos, muitos deles apresentados como profetas. Jesus é mencionado como profeta muçulmano não compreendido na sua época. Segundo o Islã, Jesus foi enviado por Deus, porém era inferior a Maomé como profeta. Ele nasceu da virgem Maria e realizou muitos milagres, mas foi protegido da morte por crucificação e não ressuscitou dentre os mortos. Era um muçulmano fiel e seguidor de Alá. 
Com a morte de Maomé, surgiram duas divisões no Islamismo, por divergências na liderança do movimento, as quais são mantidas até hoje: os sunitas e os xiitas. Apesar dessas divisões e de outras surgidas posteriormente, o Islamismo tem crescido muito, abrangendo hoje grande parte da população mundial.
Segundo Alister McGrath, em sua obra Heresia, o Alcorão parece representar os cristãos como adoradores de uma trindade de três pessoas distintas: Deus, Jesus e Maria. O Alcorão ainda identifica os cristãos como entendendo e adorando Jesus como uma figura fisicamente divina, o que equivale, segundo eles, a paganismo, idolatria ou politeísmo. Maomé teve contato com heterodoxias tanto do judaísmo como do cristianismo, as quais ele não conseguiu aceitar. Incorporados lentamente ao remanescente do Império Romano no Ocidente, os bárbaros iniciaram sua participação no Império e na Igreja. Como se deu essa assimilação? Assunto para o próximo segmento.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

12. EVANGELIZANDO OS BÁRBAROS NO CONTINENTE EUROPEU

“...pregue a mensagem e insista em anunciá-la, seja no tempo certo ou não. Procure convencer, repreenda, anime e ensine com toda a paciência.” (2 Timóteo 4.2)

 A conversão ao cristianismo era inicialmente uma decisão pessoal, feita de forma puramente espiritual. No entanto, após as perseguições religiosas, com o advento de Constantino, começa a haver um afrouxamento no aspecto de entrada para a Igreja de pessoas que não eram realmente convertidas, mas buscavam o cristianismo por conveniência. Com a evangelização dos povos germânicos, muitas vezes a conversão acabou sendo um fenômeno de massas. Normalmente era o chefe de uma tribo ou o príncipe de um povo que se convertia ao cristianismo de início, e os súditos habitualmente imitavam o exemplo do líder. Como os povos germânicos entendiam que Estado e Religião eram interligados, a conversão entre eles não era só um ato religioso, mas também político. Além disso, no início, os povos germânicos foram alcançados pelo Arianismo, movimento já condenado pela Igreja romana como herético.

O primeiro povo germânico a abraçar o cristianismo em massa foram os visigodos, que habitavam nas margens do Danúbio e ao longo da margem ocidental do Mar Negro. Essa conversão tomou maior impulso quando o godo Úlfilas começou a trabalhar como missionário no meio dos seus conterrâneos, tendo feito isso durante mais de quarenta anos. Úlfilas (311-383) foi consagrado “bispo na terra dos godos” por Eusébio de Nicomédia, um bispo ariano, em meados do século IV. Foi Úlfilas o tradutor da Bíblia na língua dos godos. Ocorrendo uma perseguição, ele fugiu, com grande multidão, para além do Danúbio e buscou proteção em Constantinopla. A adesão à ortodoxia cristã romana do grupo somente aconteceu no final do século VI.

Outro fato marcante na evangelização dos bárbaros foi a conversão e batismo de Clóvis (466-511). “Se me concederes a vitória, crerei em ti e me farei batizar”, havia sido a promessa de Clóvis a Jesus Cristo nos campos de batalha de Toul. De uma forma semelhante ao que havia sucedido antes a Constantino, havia em Clóvis uma certa barganha política com Deus para que ele se tornasse cristão. Como foi vencedor no campo de batalha, Clóvis procurou aprender a doutrina cristã; a tradição relata ainda a realização de um milagre, a cura de um cego durante o percurso do séquito real de Clóvis até a cidade de Reims. Conforme outros povos bárbaros, o rei era admirado e seguido pelos súditos, que aceitaram abandonar seus deuses pagãos e reconhecer por Senhor ao Deus eterno aceito por Clóvis. O rei foi batizado durante a Festa de Natal do ano 496, na catedral de Reims. Gregório de Tours, o primeiro biógrafo de Clóvis, informou sobre o evento: “Chegando ao limiar do batistério, onde os bispos reunidos para a circunstância tinham se postado para se juntar ao cortejo, foi o rei que, tomando por primeiro a palavra, pediu a São Remígio que lhe conferisse o batismo.” Após o batismo real, seguiram-se os batismos dos demais membros da comitiva. Acrescenta a tradição da Igreja que, após essa cerimônia, dar-se-ia a sagração do rei, ocasião na qual teve lugar um outro prodígio: surgiu uma pomba trazendo no bico uma ampola com óleo, com o qual Clóvis foi sagrado. Esse fato marcou o início do Catolicismo Romano entre os francos, os atuais franceses.

Winfrid era um inglês nascido no ano de 680 em Wessex, filho de pais cristãos, que adotou o nome latino Bonifácio com seu envolvimento na obra de evangelização. Com sua grande capacidade de aprendizado e liderança, poderia ter ficado na Inglaterra estudando, ensinando e talvez até mesmo dirigindo um mosteiro, mas tinha seu coração voltado para missões, sentindo que milhares de seus compatriotas saxões, nos Países Baixos e na Alemanha, precisavam ouvir o Evangelho. Após uma primeira experiência fracassada, foi para Roma, recebendo do papa um comissionamento missionário para ir além do rio Reno e estabelecer a igreja romana entre os povos germânicos, onde não havia ainda nenhuma atuação católica romana. Desde o século IV, as tribos germânicas haviam aceitado uma forma de arianismo misturado com suas próprias superstições. Missionários celtas haviam trabalhado na região sem continuidade e existia em Roma o desejo de que o catolicismo se estabelecesse na região. Winfrid trabalhou na Turíngia,  na Frísia e em Hesse. De volta a Roma, foi consagrado bispo, quando recebeu o nome de Bonifácio. Trabalhou junto a Carlos Martelo, rei dos francos, cujo apoio foi importante para o missionário. Confrontou-se com tradições religiosas germânicas, como no episódio da derrubada da “árvore sagrada”, no qual a história e a lenda se misturam. Bonifácio mobilizou vários missionários da Inglaterra, monges e freiras e, com a ajuda deles, estabeleceu uma vigorosa organização eclesiástica por toda a região onde atuou. Bonifácio morreu em 755, em Dackum, perto do rio Borne, em plena atividade missionária. Acusado por alguns críticos de ter feito um "trabalho missionário" basicamente político, fomentando a fidelidade à igreja romana nas áreas onde ela era fraca, Bonifácio ajudou a lançar os fundamentos do Sacro Império Romano-Germânico e as políticas do papado medieval. Devido ao seu trabalho, a Alemanha se tornou uma fortaleza da igreja romana até a época da Reforma. O historiador Kenneth Scott Latourette assim se expressou sobre Bonifácio: "Ele era humilde, a despeito das tentações que vieram com as altas posições eclesiásticas; sempre se colocou muito acima dos rumores do escândalo; foi um homem de oração e que tinha autoconfiança; assim como era corajoso, abnegado e apaixonado pela justiça. Bonifácio foi um dos maiores exemplos de vida cristã".

Na Morávia, região hoje pertencente à República Tcheca, os irmãos Cirilo e Metódio, gregos da cidade de Tessalônica, ambos clérigos dedicados, levaram a fé cristã aos eslavos e, durante o processo, ajudaram a transformar e preservar a cultura daquele povo. Em 860, eles se uniram para evangelizar a tribo cazar, a nordeste do mar Negro, atendendo a um apelo do imperador de Constantinopla, para ajudar a conter a intromissão dos francos e dos germanos sobre o povo eslavo. Dedicando-se ao aprendizado da língua nativa e começando a traduzir as Escrituras e a liturgia da igreja para o idioma eslavônico, Cirilo inventou um novo alfabeto baseado nas letras gregas, o qual se tornou a base para o alfabeto russo. Ainda hoje, o "cirílico" é usado por alguns povos. Tendo lutado pelo uso da língua da região no culto a Deus, em vez do latim imposto por Roma, Cirilo e Metódio estabeleceram uma tradição cristã na Morávia e nos países vizinhos, fato que alimentou e espalhou a fé por todo o povo.

Na Rússia, embora o cristianismo já fosse conhecido desde a primeira parte do século X, a fé não havia sido aceita de maneira geral pelo povo. Segundo lendas russas, o cristianismo chegou ao território dos atuais estados da Bielorrússia, Rússia e Ucrânia pelas mãos de André, o apóstolo de Jesus. Colônias gregas no Ponto, na Crimeia e na costa da Ucrânia permaneceram centros importantes do cristianismo na Europa Oriental por quase mil anos. Mosteiros e mesmo pretensas relíquias de Clemente, o quarto bispo de Roma, existiram na região, além dos esforços de Cirilo e Metódio, que influenciaram o cristianismo e a cultura do povos habitantes do lugar. Olga, princesa Kiev, pediu ao rei germânico Oto I que enviasse missionários a seu país, onde ainda prevalecia a religião pagã. Entre os pagãos estava Vladimir, seu neto, um homem com muitas concubinas e esposas, além de mostrar em sua vida aspectos de crueldade e falta de civilidade; ele era um amante da guerra, da caça e dos festejos. Quando chegou ao trono, Vladimir queria manter seu povo alegre e governável, pensando em unificá-lo para isso através da religião. Ele estava convencido de que deveria adotar oficialmente uma das religiões existentes. Examinando as principais religiões conhecidas, nem o islã, nem o judaísmo agradaram ao príncipe, tendo ele de escolher entre o cristianismo romano e a igreja ortodoxa oriental. Homens de Vladimir estiveram em Constantinopla, assistindo a um culto católico ortodoxo, de onde voltaram impressionados com o esplendor e a beleza ali encontrada, e afirmando: “Sabemos apenas que Deus habita entre aqueles homens e que seu culto ultrapassa em muito a adoração de todos os outros lugares”. A beleza da missa realizada em Haja Sophia foi decisiva para que Vladimir optasse pela ortodoxia católica oriental. Em 988, Vladimir casou-se com Ana, a irmã do imperador Basílio, de Constantinopla, após ter sido batizado. Depois do batismo de Vladimir, o povo colocou de lado as velhas religiões, aderindo ao catolicismo ortodoxo, que continua forte naquela parte da Europa até hoje. Metódio e Cirilo foram importantes para esse resultado, pois, graças a eles, a Rússia tinha uma liturgia cristã no idioma eslavônico, sua própria língua. As pessoas puderam então participar dos serviços religiosos e entender a liturgia nas belas igrejas construídas por Vladimir e seus sucessores. A conversão de Vladimir claramente influenciou seu estilo de vida, pois afirma a história que, ao se casar com Ana, ele deixou as outras cinco esposas e demais concubinas, destruiu também os ídolos pagãos, protegeu os oprimidos, criou escolas e igrejas e viveu em paz com as nações vizinhas. Em seu leito de morte, doou todas as suas posses aos pobres. Vladimir foi declarado santo pela igreja católica ortodoxa.
 
 
O historiador presbiteriano Alderi Souza de Matos lembra que nem sempre na história da igreja os grupos imigrantes foram agentes da evangelização, mas às vezes foram objeto da mesma. Com os grandes deslocamentos humanos em que consistiram as invasões bárbaras na Europa dos séculos quarto e quinto, o que aconteceu foi a migração desses povos da Ásia e da Europa Oriental para o rico Império Romano em busca de melhores condições de vida. À medida que os bárbaros foram conquistando, também foram sendo conquistados, tendo chegado como pagãos e se tornado cristãos. Além do Arianismo, também os nestorianos na Ásia, durante muitos séculos, levaram a mensagem de Cristo a muitos lugares inóspitos e longínquos que nunca haviam sido atingidos pelo cristianismo majoritário, apesar de serem grupos marginalizados pela igreja oficial e considerados heréticos, fato ocorrido também em outros locais do Império com outros grupos.

Após a queda de Roma e enquanto os bárbaros estavam sendo evangelizados, surgiu na Ásia um movimento religioso em muitos pontos relacionado ao judaísmo e ao cristianismo. Foi o nascimento de Maomé e o aparecimento do Islamismo, assunto a ser estudado no próximo fascículo.