“... ainda que nós
mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema.”
(Gálatas 1.8)
Antes de discutirmos o problema da heresia em si,
vamos a algumas definições. Ortodoxia, segundo o dicionário do Aurélio, é o cumprimento fiel, exato e inconcusso (inabalável) de uma doutrina religiosa; é ainda conformidade com essa doutrina. Num
sentido mais extremo, é a intransigência
a tudo quanto é novo, a rejeição de
novos princípios ou ideias. O antônimo de ortodoxia é heterodoxia, que se
define como oposição a ou diferença de
algum padrão adquirido, como a Bíblia, por exemplo. Heresia é definida
pelo dicionário como doutrina contrária
ao que foi definido pela Igreja em
matéria de fé (grifo nosso). Nesta multiplicidade atual de visões cristãs,
cabe aqui a pergunta: “Qual igreja?”
No
seu livro “Heresia”, o autor anglicano Alister McGrath se lembra de hairesis no grego, que significa escolher ou escolha. Portanto, como termo neutro, não pejorativo, na origem, heresia
significava apenas um ato de escolha.
Aprofundando o significado da palavra, McGrath afirma ainda que heresia é a “crença
cristã que, mais por acaso do que por desígnio, acaba por subverter,
desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cristã.” Diz mais ainda o citado autor: “Heresia
não significa incredulidade no sentido estrito do termo, mas uma forma de fé
que, no final das contas, é considerada subversiva ou destrutiva e, assim, leva
indiretamente ao estado de incredulidade.
O
cristianismo foi visto inicialmente como seita (ou seja, escolha, heresia)
dentro do judaísmo, o qual era considerado como religio licita, (ou
seja, religião legal) dentro do império, fato que livrou a Igreja de perseguições
iniciais por parte de Roma. Pode-se, portanto, concluir, com base no que já foi
afirmado, que o conceito de heresia e seus termos correlatos é amplo, relativo
a diferentes grupos cristãos, já que cada um deles tem a sua ortodoxia.
Tendo surgido e crescido inicialmente na
cultura judaica, enquanto a Igreja não se sentiu pressionada pela perseguição a
sair de Jerusalém e assim levar o evangelho a outras culturas dentro do Império
Romano, talvez o problema da heresia não tivesse sido sentido. O verso
de Paulo citado no início foi um alerta aos cristãos da Galácia, um território gentio, e se estende até nós hoje.
O
pensamento do mundo moderno com relação à heresia pode ser deduzido da seguinte
frase de Will Herbert: “Hoje, as pessoas
se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem
interessantes; pois o que significa ser um herege, senão ter mente original,
ser um homem que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?” E nós, cristãos, será que conhecemos
devidamente a heresia para a reconhecermos e a combatermos?
Procurando
conhecer mais de perto o assunto, vamos partir de um movimento que foi definitivo
no início da Igreja e que reaparece com força no século XXI: o Gnosticismo. Sobre
o assunto, assim se expressou W. Walker: “É preciso distinguir entre o
fenômeno geral do gnosticismo em si mesmo e as formas definidas e particulares
que ele assumiu através da associação com o cristianismo. Nem todo o movimento
gnóstico era cristão e o movimento ou tendência religiosa que ele representa
existiam independentemente da igreja, ainda que ele não preceda em muito o
cristianismo. O que eles têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria
essência.” Paulo alertou Timóteo
pera que guardasse o depósito da fé que lhe havia sido confiado, evitando as
conversas vãs e profanas e “as oposições
da falsamente chamada ciência.” Embora o nome ainda não existisse na sua
época, com certeza ele se referia ao gnosticismo.
Partindo
de Shelley, Cairns e Walker, três historiadores, vamos definir alguns termos
dentro do gnosticismo. Shelley apresenta um esquema de avaliação do movimento
que mostra no mundo superior um “Pai Sem Nome” espiritual e bom, que contrasta
na parte inferior com o “Mundo Material e Mau”, e entre os dois, o “Pleroma”e o
“Kenoma”. Vagando entre eles estão os “Eons” (ou Aeons), ou seja, as emanações
ou os mediadores (“História do
Cristianismo ao alcance de todos”, Bruce L. Shelley). Pleroma é o mundo original,
mundo divino de coisa-espírito, que é denominado a plenitude. Kenoma é o mundo inferior, mundo material, que
algumas vezes é chamado de o vazio.
As emanações (ou Eons) são seres com menos
espírito e uma quantidade de matéria cada vez maior: Pistis (fé),
Sophia (sabedoria), Anthropos (homem) e Demiurgo são exemplos de Eons. O demiurgo tinha espírito
suficiente em si, possuindo poder criador e dispondo de elementos para criar o
mundo material, que era mau; o demiurgo não podia criar do nada (ex nihilo),
mas somente a partir de um caos preexistente. No chamado “gnosticismo cristão”,
o Javé do Antigo Testamento era identificado como um demiurgo, demonstrando os
gregos total antipatia por ele. Sobre a mesma linha de pensamento, W. Walker acrescenta:
“Querendo libertar as almas aprisionadas no mundo material, Sophia rebela-se
contra Demiurgo, e o verdadeiro Deus inefável envia aos homens seu filho mais
querido, o eon Chirstós (ou Cristo), que desce ao mundo material com o objetivo
de transmitir ‘Gnosis’ (conhecimento) às almas para que elas tenham consciência
de sua identidade divina e partam para o Pleroma, libertando-se do jugo e da
escravidão do Demiurgo.” Para o Gnosticismo, segundo Cairns, “a
tarefa de Cristo era ensinar uma gnose ou conhecimento especial que ajudaria o
homem a se salvar por um processo intelectual”.
Sabedoria,
filosofia, ciência, racionalidade eram conceitos muito caros aos gregos, e
houve cristãos que se encantaram com eles no início da história da Igreja, ao
ponto de tentarem adequar a filosofia grega ao cristianismo. Alguns até
julgavam que, no passado, os filósofos gregos haviam ido buscar seus conceitos
éticos no Pentateuco, em Moisés e no Velho Testamento.
Dentro do gnosticismo mais propriamente, o
Valentianismo e o Marcionismo foram os movimentos mais difíceis de combater para
o cristianismo inicial, a partir de meados do século II. Valentino talvez tenha
sido discípulo de Teudas, que foi discípulo de Paulo. Márcion rejeitava o
judaísmo e criou um “cânon neotestamentário” próprio, apenas com parte do
evangelho de Lucas e as epístolas gerais de Paulo. Na época, a Igreja não dispunha
ainda a organização que viria a ser desenvolvida, e os dois líderes se
separaram voluntariamente das demais congregações cristãs, criando “igrejas”
para si próprios. A
Igreja geral pareceu perceber a necessidade de se preocupar com o assunto e
seus líderes passaram a refletir sobre a seleção de textos que deveriam ser
aceitos como inspirados. Levou praticamente três séculos, mas finalmente
chegou-se ao cânon definitivo do Novo Testamento. Como
heresias clássicas iniciais, podemos citar:
- Ebionismo (um modelo judaico para Jesus de Nazaré, segundo McGrath), relatado inicialmente em Atos 15;
- Docetismo (a humanidade de Jesus de Nazaré), originário de Cerinto;
- Arianismo (a identidade de Cristo), iniciado por Ário na época de Constantino;
- Donatismo (a natureza da Igreja), de Donato, no norte da África;
- Pelagianismo, (a natureza humana e a graça divina), heresia criada por Pelágio.
As
heresias iniciais surgiram no período de perseguição da Igreja; heresia e
ortodoxia eram na época conceitos importantes apenas dentro das comunidades
cristãs, às vezes perseguidas. A partir de Constantino e do Arianismo, heresia
e ortodoxia passaram a ser preocupações políticas do império, com importantes
implicações legais, já que o Estado começou a se envolver profundamente nas
questões teológicas.
Vivendo
numa época na qual “as pessoas se
vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem
interessantes”, segundo Will Herbert, podemos afirmar que o gnosticismo hoje
está em moda. Cabe à Igreja procurar conhecer bem esses assuntos, para que
possa estar preparada para ser sal e luz, numa sociedade que admira mais a
exceção do que a regra, o heterodoxo e herético do que o ortodoxo.
Sobre
as congregações cristãs, precisamos conhecer as heterodoxias que foram
modificando a ortodoxia inicial apostólica, desenvolvidas pela Igreja Católica,
assunto do próximo fascículo.
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