20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

16 A IGREJA E A HERESIA

“... ainda que nós mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro evangelho além do que vos tenho anunciado, seja anátema.” (Gálatas 1.8)

Antes de discutirmos o problema da heresia em si, vamos a algumas definições. Ortodoxia, segundo o dicionário do Aurélio, é o cumprimento fiel, exato e inconcusso (inabalável) de uma doutrina religiosa; é ainda conformidade com essa doutrina. Num sentido mais extremo, é a intransigência a tudo quanto é novo, a rejeição de novos princípios ou ideias. O antônimo de ortodoxia é heterodoxia, que se define como oposição a ou diferença de algum padrão adquirido, como a Bíblia, por exemplo. Heresia é definida pelo dicionário como doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé (grifo nosso). Nesta multiplicidade atual de visões cristãs, cabe aqui a pergunta: “Qual igreja?”
No seu livro “Heresia”, o autor anglicano Alister McGrath se lembra de hairesis no grego, que significa escolher ou escolha. Portanto, como termo neutro, não pejorativo, na origem, heresia significava apenas um ato de escolha. Aprofundando o significado da palavra, McGrath afirma ainda que heresia é a “crença cristã que, mais por acaso do que por desígnio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cristã.” Diz mais ainda o citado autor: “Heresia não significa incredulidade no sentido estrito do termo, mas uma forma de fé que, no final das contas, é considerada subversiva ou destrutiva e, assim, leva indiretamente ao estado de incredulidade.
O cristianismo foi visto inicialmente como seita (ou seja, escolha, heresia) dentro do judaísmo, o qual era considerado como religio licita, (ou seja, religião legal) dentro do império, fato que livrou a Igreja de perseguições iniciais por parte de Roma. Pode-se, portanto, concluir, com base no que já foi afirmado, que o conceito de heresia e seus termos correlatos é amplo, relativo a diferentes grupos cristãos, já que cada um deles tem a sua ortodoxia.
Tendo surgido e crescido inicialmente na cultura judaica, enquanto a Igreja não se sentiu pressionada pela perseguição a sair de Jerusalém e assim levar o evangelho a outras culturas dentro do Império Romano, talvez o problema da heresia não tivesse sido sentido. O  verso de Paulo citado no início foi um alerta aos cristãos da Galácia, um território gentio, e se estende até nós hoje.
O pensamento do mundo moderno com relação à heresia pode ser deduzido da seguinte frase de Will Herbert: “Hoje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um herege, senão ter mente original, ser um homem que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?”  E nós, cristãos, será que conhecemos devidamente a heresia para a reconhecermos e a combatermos?
Procurando conhecer mais de perto o assunto, vamos partir de um movimento que foi definitivo no início da Igreja e que reaparece com força no século XXI: o Gnosticismo. Sobre o assunto, assim se expressou W. Walker: “É preciso distinguir entre o fenômeno geral do gnosticismo em si mesmo e as formas definidas e particulares que ele assumiu através da associação com o cristianismo. Nem todo o movimento gnóstico era cristão e o movimento ou tendência religiosa que ele representa existiam independentemente da igreja, ainda que ele não preceda em muito o cristianismo. O que eles têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria essência.” Paulo alertou Timóteo pera que guardasse o depósito da fé que lhe havia sido confiado, evitando as conversas vãs e profanas e “as oposições da falsamente chamada ciência.” Embora o nome ainda não existisse na sua época, com certeza ele se referia ao gnosticismo.   
Partindo de Shelley, Cairns e Walker, três historiadores, vamos definir alguns termos dentro do gnosticismo. Shelley apresenta um esquema de avaliação do movimento que mostra no mundo superior um “Pai Sem Nome” espiritual e bom, que contrasta na parte inferior com o “Mundo Material e Mau”, e entre os dois, o “Pleroma”e o “Kenoma”. Vagando entre eles estão os “Eons” (ou Aeons), ou seja, as emanações ou os mediadores (“História do Cristianismo ao alcance de todos”, Bruce L. Shelley). Pleroma é o mundo original, mundo divino de coisa-espírito, que é denominado a plenitude. Kenoma é o mundo inferior, mundo material, que algumas vezes é chamado de o vazio.
As emanações (ou Eons) são seres com menos espírito e uma quantidade de matéria cada vez maior: Pistis (fé), Sophia (sabedoria), Anthropos (homem) e Demiurgo são exemplos de Eons. O demiurgo tinha espírito suficiente em si, possuindo poder criador e dispondo de elementos para criar o mundo material, que era mau; o demiurgo não podia criar do nada (ex nihilo), mas somente a partir de um caos preexistente. No chamado “gnosticismo cristão”, o Javé do Antigo Testamento era identificado como um demiurgo, demonstrando os gregos total antipatia por ele. Sobre a mesma linha de pensamento, W. Walker acrescenta: “Querendo libertar as almas aprisionadas no mundo material, Sophia rebela-se contra Demiurgo, e o verdadeiro Deus inefável envia aos homens seu filho mais querido, o eon Chirstós (ou Cristo), que desce ao mundo material com o objetivo de transmitir ‘Gnosis’ (conhecimento) às almas para que elas tenham consciência de sua identidade divina e partam para o Pleroma, libertando-se do jugo e da escravidão do Demiurgo.” Para o Gnosticismo, segundo Cairns, “a tarefa de Cristo era ensinar uma gnose ou conhecimento especial que ajudaria o homem a se salvar por um processo intelectual”.
Sabedoria, filosofia, ciência, racionalidade eram conceitos muito caros aos gregos, e houve cristãos que se encantaram com eles no início da história da Igreja, ao ponto de tentarem adequar a filosofia grega ao cristianismo. Alguns até julgavam que, no passado, os filósofos gregos haviam ido buscar seus conceitos éticos no Pentateuco, em Moisés e no Velho Testamento.
Dentro do gnosticismo mais propriamente, o Valentianismo e o Marcionismo foram os movimentos mais difíceis de combater para o cristianismo inicial, a partir de meados do século II. Valentino talvez tenha sido discípulo de Teudas, que foi discípulo de Paulo. Márcion rejeitava o judaísmo e criou um “cânon neotestamentário” próprio, apenas com parte do evangelho de Lucas e as epístolas gerais de Paulo. Na época, a Igreja não dispunha ainda a organização que viria a ser desenvolvida, e os dois líderes se separaram voluntariamente das demais congregações cristãs, criando “igrejas” para si próprios. A Igreja geral pareceu perceber a necessidade de se preocupar com o assunto e seus líderes passaram a refletir sobre a seleção de textos que deveriam ser aceitos como inspirados. Levou praticamente três séculos, mas finalmente chegou-se ao cânon definitivo do Novo Testamento. Como heresias clássicas iniciais, podemos citar:
  • Ebionismo (um modelo judaico para Jesus de Nazaré, segundo McGrath), relatado inicialmente em Atos 15;
  • Docetismo (a humanidade de Jesus de Nazaré), originário de Cerinto;
  • Arianismo (a identidade de Cristo), iniciado por Ário na época de Constantino;
  • Donatismo (a natureza da Igreja), de Donato, no norte da África;
  • Pelagianismo, (a natureza humana e a graça divina), heresia criada por Pelágio.
As heresias iniciais surgiram no período de perseguição da Igreja; heresia e ortodoxia eram na época conceitos importantes apenas dentro das comunidades cristãs, às vezes perseguidas. A partir de Constantino e do Arianismo, heresia e ortodoxia passaram a ser preocupações políticas do império, com importantes implicações legais, já que o Estado começou a se envolver profundamente nas questões teológicas.
Vivendo numa época na qual “as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes”, segundo Will Herbert, podemos afirmar que o gnosticismo hoje está em moda. Cabe à Igreja procurar conhecer bem esses assuntos, para que possa estar preparada para ser sal e luz, numa sociedade que admira mais a exceção do que a regra, o heterodoxo e herético do que o ortodoxo.
Sobre as congregações cristãs, precisamos conhecer as heterodoxias que foram modificando a ortodoxia inicial apostólica, desenvolvidas pela Igreja Católica, assunto do próximo fascículo.

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