20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

19. A IGREJA E OS PRÉ-REFORMADORES

“Se alguém ensina falsas doutrinas e não concorda com a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino que é segundo a piedade, é orgulhoso e nada entende.” (1 Timóteo 6.3-4a)

Tendo iniciado suas atividades no primeiro século como uma entidade perseguida e martirizada, após três séculos, a Igreja Cristã conheceu novos tempos com Constantino, o qual deu início a um processo que levaria o Cristianismo, já na forma de um catolicismo bem avançado em sua estruturação, a se tornar a religião oficial do Império Romano. Com o advento do Catolicismo, surgiram heterodoxias, contrariando muitos dos elementos da ortodoxia inicial. As mudanças introduzidas nem sempre agradaram a todos, motivando, ao longo dos séculos, o surgimento de grupos dissidentes, como montanistas, novacianos, paterinos, donatistas, paulicianos, arnoldistas, albingenses e outros, praticamente todos aniquilados pela Igreja. Os Albingenses, por exemplo, surgiram em Albi, cidade situada ao sudoeste da França, no século XIII e defendiam a existência de dois princípios supremos, o Bem e o Mal, sendo o primeiro o criador dos espíritos e o segundo o da matéria. Os que seguiam suas práticas eram denominados "perfeitos" e considerados uma espécie de herdeiros ou continuadores das práticas dos apóstolos. Outros líderes, como Pedro de Bruys, do sul da França, levantaram sua voz para pregar contra os desvios da fé cristã primitiva, sendo perseguidos por Roma. Johannes Tauler (1300-1361), um místico, teólogo e pregador católico da ordem dos dominicanos, foi outro líder que lutou por mudanças, influenciando mais tarde a Lutero por suas ideias quanto à doutrina da justificação. Essas insatisfações não tinham por objetivo criar uma nova igreja, mas sim levar a igreja romana a se voltar para a Palavra de Deus. Dessa maneira, a pré-reforma, e mesmo a Reforma, podem ser vistas como movimentos internos da Igreja por parte de “católicos” comprometidos com a Bíblia.

Apesar da perseguição, porém, existiram alguns movimentos que persistiram até o século XVI, com seguidores até na época de Lutero. Os Valdenses foram seguidores de Pedro Valdo, que morreu em 1217. Originários de Lyon, região da atual França, os valdenses reuniam-se em casas de família ou mesmo em grutas, negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens e procuravam praticar a doutrina cristã apostólica. Com o movimento reformador de Lutero, eles juntaram-se ao protestantismo na década de 1530, seguindo uma linha calvinista. Existem seguidores desta linha ainda hoje em países como Uruguai, Argentina, Itália e Estados Unidos.

Outro grupo que deixou seguidores até o século XVI foi o iniciado pelo inglês John Wycliffe (1328-1384), que pregava o retorno da Igreja à primitiva condição dos tempos apostólicos, além da separação entre os dois poderes: a Igreja para questões espirituais e o poder político exercido pelo Estado. Vivendo num período pouco posterior ao “exílio babilônico” de Avignon e ao Grande Cisma da Igreja Romana, Wycliffe entendia que o cristão não precisa de Roma ou Avignon, pois Deus está em toda parte. Acreditava que “nosso papa é o Cristo” e deixou registrado que “a verdadeira autoridade emana da Bíblia, que contém o suficiente para governar o mundo”. Seus seguidores ficaram conhecidos como "lolardos", um grupo de pessoas vestidas de roupas simples, sem calçados, de cajado na mão e dependendo de esmolas, os quais percorreram a Inglaterra levando seus textos bíblicos manuscritos e pregando o evangelho. Professor em Oxford, Wycliffe fez a primeira tradução do Novo Testamento para o inglês. Opondo-se a indulgências, ordens religiosas, transubstanciação e outros dogmas da Igreja Romana, foi perseguido em vida e, após a morte, foi julgado como herege pelo Concílio de Constança, sendo seus restos mortais exumados e queimados. Ele é chamado por alguns de "Estrela d'Alva da Reforma". 
Na Europa continental, mais especificamente na Boêmia (atualmente parte da república Tcheca) surgiu outro grupo de pré-reformadores com remanescentes até em período posterior à Reforma surgiu. Jan Huss (1373-1415) foi reitor na Universidade de Praga e teve suas ideias reformistas influenciadas por Wycliffe. Como as ideias eram contrárias a Roma, Huss foi proibido de pregar pelo papa, tendo sido, por sua persistência, convocado a comparecer em Roma, recusando-se a ir e sendo excomungado. No Concílio de Constança defendeu-se pessoalmente, tendo sido preso e acusado de heresia. Huss morreu na fogueira. Precursor do movimento protestante e tendo desempenhado um importante papel na história literária tcheca, hoje sua estátua pode ser encontrada na praça central de Praga. Seus seguidores ficaram conhecidos como Hussitas.
Duas figuras individuais dentro da Igreja Católica, que não a abandonaram, mas se opuseram a Roma, foram Savonarola e Erasmo. Jerônimo Savonarola (1452-1498), italiano de Florença, pregava sermões para grandes multidões contra a sensualidade e o pecado da sua cidade e os vícios do papa, em reuniões que enchiam a catedral da cidade. Os moradores ouviam e tentavam seguir seus ensinos, mas o papa Alexandre VI procurou calar o pregador. Savonarola foi enforcado e queimado na grande praça de Florença em 1498, dezenove anos antes da divulgação das 95 teses de Lutero.
Na Holanda, em Rotterdam, surgiu a figura de Desidério Erasmo (1466-1536), um grande crítico da Igreja Católica e contemporâneo de Lutero. Erasmo foi uma figura importante para se entender as transformações pelas quais passou a fé religiosa e o pensamento ocidental, da Idade Média à época moderna. Tendo recebido forte educação religiosa e latinista, Erasmo tornou-se sacerdote por volta de 1492, deixando a batina logo depois; na Sorbonne, aprimorou-se no pensamento clássico, tendo lecionado na Inglaterra (Cambridge), Bélgica e Espanha. Como humanista, Erasmo acreditava que a razão tinha de ser de utilidade ao homem, criticando teólogos e filósofos que defendiam uma fé católica artificial, incoerente e mística. Ele opôs-se a Lutero, pois acreditava que o catolicismo devia ser reformado internamente, sem cismas nem sangue. Colóquios e Elogio da Loucura são duas importantes obras suas. Seus textos foram tão importantes que geraram na época a criação de um adjetivo, “erásmico”, para tudo o que fosse engenhoso, acadêmico ou sabiamente escrito, no sentido de sem erro e perfeito. Sobre Erasmo, afirma Justo Gonzalez, no livro “A Era dos Sonhos Frustrados” que “... o humanista holandês procurava a reforma dos costumes, a prática da decência e a moderação; pouco a pouco foi conquistando a admiração de boa parte dos eruditos da Europa, que se escandalizavam com as atividades dos papas da Renascença; entre seus admiradores havia não poucos nobres e soberanos.” Após o advento da Reforma, porém, “... Erasmo não tinha percebido a profundidade das questões em debate, e a reforma por que ele tanto ansiara não aconteceu; seu sonho, como tantos outros antes, foi frustrado.”

Por praticamente doze séculos, o Catolicismo se estabeleceu como religião oficial do Império Romano e da região da Eurásia que o sucedeu, perseguindo e aniquilando os movimentos contrários à sua ortodoxia, os quais considerava heréticos. No entanto, muitos dos movimentos e dos líderes que se opuseram às heterodoxias católicas levantaram bandeiras, algumas das quais, a partir do século XVI, seriam retomadas pelos movimentos reformadores protestantes. Alguns dos movimentos e dos pré-reformadores dos séculos anteriores a Lutero conseguiram, a duras penas, sobreviver até o século XVI. Savonarola, Erasmo e mesmo os reformadores iniciais não tinham intenção de acabar com a unidade da Igreja, mas de reformá-la internamente naquilo que viam como desvios. Os futuros fascículos discutirão os rumos que a Igreja tem tomado, desde que católicos e protestantes foram colocados em posições eclesiásticas antagônicas. 
Houve, porém, um período na história, principalmente na Europa Ocidental, quando muitas mudanças começaram a ocorrer, as quais foram fundamentais na preparação do mundo para o movimento reformador que seria iniciado por Lutero. No próximo fascículo, vamos abordar as mudanças do século XV e seus reflexos na Igreja.  

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