20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

20. A IGREJA E AS MUDANÇAS DO SÉCULO XV

“Porque eu, o Senhor, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos .” (Malaquias 3.6)

Há um momento na história da Igreja no qual os acontecimentos históricos precisam ser conhecidos para se avaliar o que eles representaram para a fé cristã, no transcorrer dos futuros fatos históricos . No século XVI, em Portugal, viveu um poeta chamado Luís de Camões (1524-1580), de cuja obra extraímos os seguintes versos:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/muda-se o ser, muda-se a confiança;/todo o mundo é composto de mudança,/tomando sempre novas qualidades.”
Embora escrito no século XVI, o soneto de Camões de onde extraímos o quarteto inicial mostra o reflexo das mudanças que o poeta via no Portugal de sua época, novidades que o mundo começou a apresentar nos séculos anteriores e que tiveram seu apogeu no século XV. Para Camões, as mudanças começaram a se refletir na poesia, que, como todas as demais artes, passava por uma mudança radical no chamado Renascimento.
Roma, que havia sido capital de um imenso império por séculos, não se esquecia da glória antiga, como promotora das artes, da filosofia, da cultura, enfim. Não foi por acaso que o Renascimento surgiu em terras italianas, com o poeta Petrarca que, imitando o estilo de Cícero, poeta romano, passou a compor seus poemas em latim. A arte, até então dedicada à religião e gerenciada pela Igreja, passou a se inspirar no ser humano. Muitos artistas apareceram nas diferentes áreas, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Cervantes, Shakespeare e Camões, além de outros. Com o Renascimento, cansado de tanto teocentrismo místico católico, o ser humano foi levado a apreciar o humanismo, que buscava um antropocentrismo, ou seja, colocava o homem como o centro das atenções. O humanismo foi o movimento que buscou o renascimento da cultura, partindo de Atenas e Roma, sendo essa a realidade geral nos países latinos abaixo dos Alpes. Acima dos Alpes, porém, nos países de formação mais germânica, essa revalorização da cultura clássica e antiga envolveu não somente a volta ao grego e ao latim, mas também às origens bíblicas, despertando também um interesse pelo conhecimento do hebraico e do aramaico; é o humanismo cristão. Desiderius Erasmus, de Rotterdam (1467-1536), já mencionado, foi o líder e modelo literário do século.
Constantinopla, a “Nova Roma” construída por Constantino, tornou-se uma das cidades mais importantes do mundo, funcionando como uma passagem para as rotas comerciais que ligavam a Ásia à Europa por terra, além de ser o principal porto nas rotas que iam e vinham entre os mares Mediterrâneo e  Negro. O cisma entre as Igrejas Católicas Ortodoxa e Romana manteve Constantinopla distante das nações ocidentais. Constantemente assediada pelos muçulmanos, após longo período de sítio, em 1453, as muralhas de Constantinopla, tidas como inexpugnáveis, cederam aos ataques dos turcos otomanos sob o comando de Maomé II, que dirigia um exército de cerca de 80 mil turcos. A cidade, último vestígio do Império Romano do Oriente e do antigo Império Bizantino, caiu nas mãos dos muçulmanos; sua queda abriu caminho aos poucos para o surgimento de um novo momento na história: a Era Moderna. A cidade e seus moradores foram poupados da destruição porque houve interesse em mudar a capital turca para lá. O nome foi mudado para Istambul, mantido até hoje, e prédios foram reaproveitados, como a Igreja Haja Sophia, transformada em mesquita muçulmana.
Com o fechamento das rotas comerciais usadas pelos reinos da Europa Ocidental no seu comércio com a Ásia, principalmente com a Índia e a China, os europeus ocidentais se viram obrigados a buscar novos caminhos pelos oceanos, especialmente o Atlântico e o Índico. Não havia grandes conhecimentos e experiência para essas navegações transoceânicas, já que, desde o Império Romano, as navegações eram costeiras ou através de mares. Ocupando uma posição favorável na Península Ibérica, projetando-se na direção do Oceano Atlântico, Portugal e Espanha se lançaram em projetos de navegação buscando novos instrumentos, tendo Portugal inclusive desenvolvido uma escola para navegantes, a Escola de Sagres, fornecendo mão de obra formada para uma nova profissão, os navegantes transoceânicos, função que surgiria com força a partir do final do século XV. Mito ou realidade, Sagres acabou tendo seu nome ligado a navegações e descobrimentos de menor abrangência na primeira metade do século XV, explorando as ilhas e as regiões costeiras da África. Em 1434, Gil Eanes foi além do Cabo Bojador, a Taprobana de “Os Lusíadas” de Camões. Além do Bojador era o Mar Tenebroso dos geógrafos árabes, navegação temida pelos europeus pelas dificuldades no regresso, a qual exigia novos conhecimentos científicos. Instrumentos de navegação, como o quadrante, o astrolábio e a balestilha, foram desenvolvidos e aperfeiçoados por Portugal e Espanha no segundo quartel do século XV, para determinar a posição do navio no mar. Bartolomeu Dias ultrapassou o Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, em 1487, num trajeto que seria repetido por Vasco da Gama, descobrindo o caminho marítimo para a Índia, em 1498. Essa atividade cresceria até o final do século e no próximo, provocando não somente a descoberta de novas rotas comerciais de navegação, mas também de novas terras e de um continente totalmente desconhecido. A partir do século XVI, a Europa se envolveria na colonização das novas terras descobertas, começando por Portugal e Espanha, os pioneiros, mas abrangendo também aos poucos ingleses, franceses, holandeses e outros povos. O “mapa mundi” conhecido na época passaria a ser redesenhado.
Contrariando o que se afirma, o alemão Johannes Gutenberg (c.1400-1468) não inventou, mas aprimorou a imprensa no século XV. A técnica de imprimir com caracteres móveis é, na verdade, asiática e muito antiga. Começando com a criação do papel pelos chineses no século I da Era Cristã, passando pela gravura em pedra, a cópia manual, a xilografia, a técnica de impressão foi sendo aperfeiçoada, esbarrando no problema: o material utilizado para imprimir não podia ser reaproveitado em novas impressões, fato que encarecia o processo. Johann Gutemberg desenvolveu os caracteres móveis de chumbo, que podiam ser utilizados indefinidamente; desenvolveu ainda uma nova tinta de impressão e criou a prensa para imprimir. O primeiro fruto de seu trabalho foi a impressão de uma edição da Bíblia, em 1456, o primeiro livro produzido na Europa com a ajuda dos caracteres móveis, com tiragem de 180 exemplares. Ainda existem 48 cópias dessa Bíblia, conservadas em museus e bibliotecas mundo afora. O processo foi longo e dispendioso, exigindo muito esforço, o envolvimento de outras pessoas e financiamento. O surgimento da imprensa mudou definitivamente o mundo, em todas as suas dimensões: política, econômica, intelectual, social e religiosa. A partir de Gutemberg, a imprensa disseminou-se com uma rapidez muito grande: em pouco tempo, mais de mil oficinas espalharam-se pela Europa, produzindo muitos milhares de publicações  ainda no século XV. A obra de Gutemberg mudou para sempre o panorama cultural do mundo, pois, a partir de sua criação, publicações e textos em geral puderam ser impressos e reproduzidos com facilidade e em tiragens cada vez maiores. No século XVI, para Lutero e os reformadores da Igreja, isto seria de uma ajuda inestimável, tornando possível a disseminação das ideias de forma muito mais rápida do que acontecia antes de Gutemberg. Partindo do interesse pela leitura da Bíblia, escolas foram abertas e o povo desafiado a aprender a ler e a escrever, fato que até então não fazia muito sentido.
E a Igreja no século XV: qual era a sua situação? Na Idade Média, a igreja era a única agência internacional com credibilidade ou influência relevante. Por ser muito conservadora, a Igreja medieval não podia ser desafiada e oferecia apoio teológico para a ordem social e física existentes, ordem essa considerada de origem divina, com regras fixas e permanentes, respeitando a autoridade tradicional de famílias e de monarcas ordenados por Deus. Era uma visão estática da igreja, em um mundo de mudanças dinâmicas. Movimentos e líderes religiosos não aceitavam mais as imposições do catolicismo, gerando reações e seguidores.
Concluindo o assunto, afirma Alister McGrath: “Uma teologia religiosa que legitimasse a mudança, ou talvez até mesmo a encorajasse, poderia enfraquecer essa visão de mundo estática e abrir caminho para uma alternativa dinâmica”. No entanto, isto somente iria acontecer no século XVI, com os reformadores, assunto do próximo fascículo.

19. A IGREJA E OS PRÉ-REFORMADORES

“Se alguém ensina falsas doutrinas e não concorda com a sã doutrina de nosso Senhor Jesus Cristo e com o ensino que é segundo a piedade, é orgulhoso e nada entende.” (1 Timóteo 6.3-4a)

Tendo iniciado suas atividades no primeiro século como uma entidade perseguida e martirizada, após três séculos, a Igreja Cristã conheceu novos tempos com Constantino, o qual deu início a um processo que levaria o Cristianismo, já na forma de um catolicismo bem avançado em sua estruturação, a se tornar a religião oficial do Império Romano. Com o advento do Catolicismo, surgiram heterodoxias, contrariando muitos dos elementos da ortodoxia inicial. As mudanças introduzidas nem sempre agradaram a todos, motivando, ao longo dos séculos, o surgimento de grupos dissidentes, como montanistas, novacianos, paterinos, donatistas, paulicianos, arnoldistas, albingenses e outros, praticamente todos aniquilados pela Igreja. Os Albingenses, por exemplo, surgiram em Albi, cidade situada ao sudoeste da França, no século XIII e defendiam a existência de dois princípios supremos, o Bem e o Mal, sendo o primeiro o criador dos espíritos e o segundo o da matéria. Os que seguiam suas práticas eram denominados "perfeitos" e considerados uma espécie de herdeiros ou continuadores das práticas dos apóstolos. Outros líderes, como Pedro de Bruys, do sul da França, levantaram sua voz para pregar contra os desvios da fé cristã primitiva, sendo perseguidos por Roma. Johannes Tauler (1300-1361), um místico, teólogo e pregador católico da ordem dos dominicanos, foi outro líder que lutou por mudanças, influenciando mais tarde a Lutero por suas ideias quanto à doutrina da justificação. Essas insatisfações não tinham por objetivo criar uma nova igreja, mas sim levar a igreja romana a se voltar para a Palavra de Deus. Dessa maneira, a pré-reforma, e mesmo a Reforma, podem ser vistas como movimentos internos da Igreja por parte de “católicos” comprometidos com a Bíblia.

Apesar da perseguição, porém, existiram alguns movimentos que persistiram até o século XVI, com seguidores até na época de Lutero. Os Valdenses foram seguidores de Pedro Valdo, que morreu em 1217. Originários de Lyon, região da atual França, os valdenses reuniam-se em casas de família ou mesmo em grutas, negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens e procuravam praticar a doutrina cristã apostólica. Com o movimento reformador de Lutero, eles juntaram-se ao protestantismo na década de 1530, seguindo uma linha calvinista. Existem seguidores desta linha ainda hoje em países como Uruguai, Argentina, Itália e Estados Unidos.

Outro grupo que deixou seguidores até o século XVI foi o iniciado pelo inglês John Wycliffe (1328-1384), que pregava o retorno da Igreja à primitiva condição dos tempos apostólicos, além da separação entre os dois poderes: a Igreja para questões espirituais e o poder político exercido pelo Estado. Vivendo num período pouco posterior ao “exílio babilônico” de Avignon e ao Grande Cisma da Igreja Romana, Wycliffe entendia que o cristão não precisa de Roma ou Avignon, pois Deus está em toda parte. Acreditava que “nosso papa é o Cristo” e deixou registrado que “a verdadeira autoridade emana da Bíblia, que contém o suficiente para governar o mundo”. Seus seguidores ficaram conhecidos como "lolardos", um grupo de pessoas vestidas de roupas simples, sem calçados, de cajado na mão e dependendo de esmolas, os quais percorreram a Inglaterra levando seus textos bíblicos manuscritos e pregando o evangelho. Professor em Oxford, Wycliffe fez a primeira tradução do Novo Testamento para o inglês. Opondo-se a indulgências, ordens religiosas, transubstanciação e outros dogmas da Igreja Romana, foi perseguido em vida e, após a morte, foi julgado como herege pelo Concílio de Constança, sendo seus restos mortais exumados e queimados. Ele é chamado por alguns de "Estrela d'Alva da Reforma". 
Na Europa continental, mais especificamente na Boêmia (atualmente parte da república Tcheca) surgiu outro grupo de pré-reformadores com remanescentes até em período posterior à Reforma surgiu. Jan Huss (1373-1415) foi reitor na Universidade de Praga e teve suas ideias reformistas influenciadas por Wycliffe. Como as ideias eram contrárias a Roma, Huss foi proibido de pregar pelo papa, tendo sido, por sua persistência, convocado a comparecer em Roma, recusando-se a ir e sendo excomungado. No Concílio de Constança defendeu-se pessoalmente, tendo sido preso e acusado de heresia. Huss morreu na fogueira. Precursor do movimento protestante e tendo desempenhado um importante papel na história literária tcheca, hoje sua estátua pode ser encontrada na praça central de Praga. Seus seguidores ficaram conhecidos como Hussitas.
Duas figuras individuais dentro da Igreja Católica, que não a abandonaram, mas se opuseram a Roma, foram Savonarola e Erasmo. Jerônimo Savonarola (1452-1498), italiano de Florença, pregava sermões para grandes multidões contra a sensualidade e o pecado da sua cidade e os vícios do papa, em reuniões que enchiam a catedral da cidade. Os moradores ouviam e tentavam seguir seus ensinos, mas o papa Alexandre VI procurou calar o pregador. Savonarola foi enforcado e queimado na grande praça de Florença em 1498, dezenove anos antes da divulgação das 95 teses de Lutero.
Na Holanda, em Rotterdam, surgiu a figura de Desidério Erasmo (1466-1536), um grande crítico da Igreja Católica e contemporâneo de Lutero. Erasmo foi uma figura importante para se entender as transformações pelas quais passou a fé religiosa e o pensamento ocidental, da Idade Média à época moderna. Tendo recebido forte educação religiosa e latinista, Erasmo tornou-se sacerdote por volta de 1492, deixando a batina logo depois; na Sorbonne, aprimorou-se no pensamento clássico, tendo lecionado na Inglaterra (Cambridge), Bélgica e Espanha. Como humanista, Erasmo acreditava que a razão tinha de ser de utilidade ao homem, criticando teólogos e filósofos que defendiam uma fé católica artificial, incoerente e mística. Ele opôs-se a Lutero, pois acreditava que o catolicismo devia ser reformado internamente, sem cismas nem sangue. Colóquios e Elogio da Loucura são duas importantes obras suas. Seus textos foram tão importantes que geraram na época a criação de um adjetivo, “erásmico”, para tudo o que fosse engenhoso, acadêmico ou sabiamente escrito, no sentido de sem erro e perfeito. Sobre Erasmo, afirma Justo Gonzalez, no livro “A Era dos Sonhos Frustrados” que “... o humanista holandês procurava a reforma dos costumes, a prática da decência e a moderação; pouco a pouco foi conquistando a admiração de boa parte dos eruditos da Europa, que se escandalizavam com as atividades dos papas da Renascença; entre seus admiradores havia não poucos nobres e soberanos.” Após o advento da Reforma, porém, “... Erasmo não tinha percebido a profundidade das questões em debate, e a reforma por que ele tanto ansiara não aconteceu; seu sonho, como tantos outros antes, foi frustrado.”

Por praticamente doze séculos, o Catolicismo se estabeleceu como religião oficial do Império Romano e da região da Eurásia que o sucedeu, perseguindo e aniquilando os movimentos contrários à sua ortodoxia, os quais considerava heréticos. No entanto, muitos dos movimentos e dos líderes que se opuseram às heterodoxias católicas levantaram bandeiras, algumas das quais, a partir do século XVI, seriam retomadas pelos movimentos reformadores protestantes. Alguns dos movimentos e dos pré-reformadores dos séculos anteriores a Lutero conseguiram, a duras penas, sobreviver até o século XVI. Savonarola, Erasmo e mesmo os reformadores iniciais não tinham intenção de acabar com a unidade da Igreja, mas de reformá-la internamente naquilo que viam como desvios. Os futuros fascículos discutirão os rumos que a Igreja tem tomado, desde que católicos e protestantes foram colocados em posições eclesiásticas antagônicas. 
Houve, porém, um período na história, principalmente na Europa Ocidental, quando muitas mudanças começaram a ocorrer, as quais foram fundamentais na preparação do mundo para o movimento reformador que seria iniciado por Lutero. No próximo fascículo, vamos abordar as mudanças do século XV e seus reflexos na Igreja.  

terça-feira, 11 de novembro de 2014

18. A IGREJA, AS CRUZADAS E O PAPADO

“Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diabo; porque não temos que lutar contra carne e sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais.” (Efésios 6.11-12)

Nos tempos apostólicos, a armadura era o uniforme de guerra do soldado romano, elemento usado por Paulo para comparar com o aparelhamento do cristão nas batalhas espirituais. A mensagem de Cristo nunca foi guerreira no sentido literal, embora tenha sido por vezes revolucionária. No entanto, uma igreja que enfrentou por trezentos anos a perseguição de soldados romanos equipados, após a invasão bárbara ao Império Ocidental passou a conviver com povos guerreiros e belicosos, que a influenciaram de tal forma que seus líderes começaram a desenvolver espírito guerreiro, uma das marcas deixadas no cristianismo pelos povos germânicos anexados ao Império. Isto ficou evidente na história em vários momentos, mas principalmente nas cruzadas. E tudo foi motivado por uma cidade que até hoje tem sido lugar de conflito ao longo da história: Jerusalém. 
O que foram as cruzadas? As cruzadas se constituíram em uma “guerra santa”, logo após o domínio dos turcos muçulmanos sobre a região da Palestina, considerada sagrada pelos cristãos. Após domínio da região, os turcos passaram a impedir ferozmente a peregrinação dos europeus, através da captura e do assassinato de muitos peregrinos que visitavam o local em nome da fé. As cruzadas aconteceram entre os séculos XI e XIV. Em 1095, o papa Urbano convocou o Concilio de Clermont, quando informou que havia uma horrível notícia sendo propagada, sobre uma raça amaldiçoada e totalmente alienada de Deus que havia invadido as terras dos cristãos, expulsando-os pela espada. Apelava Urbano que os cristãos deveriam retomar as terras daquela raça invasora. "Deus vult! Deus vult!" “Deus deseja”, disse o papa, repetiu a multidão, e esse se tornou o grito de guerra das Cruzadas. Foi o início do primeiro empreendimento, o de melhor resultado final. A longo do percurso, franceses e italianos foram aderindo ao movimento, alguns motivados por objetivos religiosos, outros pensando nos lucros que teriam e outros ainda na aventura que seria recapturar os locais de peregrinação da Palestina que haviam caído nas mãos dos muçulmanos. Urbano assegurava que os guerreiros cruzados entrariam no céu diretamente, ou teriam redução no tempo de purgatório.
Após a Primeira Cruzada, foi criada a Ordem dos Cavaleiros Templários, que teve importante participação militar nos combates das Cruzadas seguintes. Os templários eram guerreiros ferozes fiéis à Igreja, que não hesitariam em dar a própria vida pela causa que lhes fosse confiada. Havia entre os templários padres, cavaleiros, soldados, além dos cavaleiros hospitalários, que tanto combatiam quanto cuidavam dos feridos. Tudo era feito em nome de Cristo sob o símbolo da cruz.
A Segunda Cruzada (1147-1149) foi proclamada por Bernardo de Claraval para libertar Edessa. A Terceira Cruzada (1189-1192) foi liderada pelos reis Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, pelo alemão Frederico Barba Roxa e pelo francês Filipe II. A Quarta Cruzada aconteceu entre 1202 e 1204, desastrosa em seus efeitos, porque se voltou contra a grande cidade cristã de Constantinopla, que foi brutalmente saqueada. A Quinta Cruzada (1217-1221) terminou em fracasso. A Sexta Cruzada ocorreu entre 1228 e 1229. Após a Sétima e a Oitava Cruzadas (1248-1270), os cruzados se retiraram definitivamente da Palestina, com a queda da cidade de Acre na mão dos muçulmanos. A Oitava Cruzada encerrou essa série de campanhas militares. Existe até a menção lendária de uma Cruzada das Crianças, ou Cruzada dos Inocentes, nome dado a um conjunto de fatos misturado com algumas fantasias que ocorreram no início do século XIII.  
O legado das Cruzadas foi variado: ameaça no relacionamento entre as igrejas do Ocidente e do Oriente, reação mais fanática dos inimigos por causa da brutalidade dos cruzados, grande incremento ao poder do papado pela liderança conseguida ao número de soldados arregimentados, além de outras. As consequências negativas das cruzadas foram mais marcantes e acabaram por se manifestar mesmo em nossos dias. A crueldade dos guerreiros cristãos que atenderam aos apelos papais para fazerem algo que, segundo o Pontífice, Deus queria que fosse feito, acabou por ocasionar, em nossos dias, uma “jirad” islâmica contra o mundo ocidental, uma “guerra santa” em sentido inverso, em nome da mesma vontade de seguir os desejos de Alá de conquistas de poder material.

Como legado positivo, podemos apontar o renascimento do comércio na Europa com reaquecimento da economia no Ocidente. Os guerreiros também trouxeram para a Europa novos conhecimentos originários do Oriente, vindos da influente sabedoria árabe. No aspecto cultural, as Cruzadas favoreceram o desenvolvimento de um tipo de literatura voltado para as guerras e os grandes feitos heroicos. Os contos de cavalaria tiveram como tema principal os conflitos das cruzadas. As Cruzadas, como se viu, foram patrocinadas e promovidas pelo papado em Roma. O papa, segundo a crença católica, é o sucessor apostólico por excelência, existindo desde Pedro, nos tempos iniciais da Igreja. Sobre o papado, o pastor presbiteriano Alderi Souza de Matos afirma que, “desde uma perspectiva protestante, o papado não é uma instituição de origem divina, mas resultou de um longo e complexo processo histórico. As Escrituras não dão apoio a essa instituição como uma ordenança de Cristo à sua igreja.” A história mostra que a palavra papa, no grego ou no latim, foi inicialmente aplicada a altos oficiais eclesiásticos de todos os tipos, especialmente aos bispos, mas, a partir de meados do quinto século, passou a ser aplicada quase que exclusivamente para os bispos de Roma. Na região oriental do Império, Alexandria, Jerusalém, Antioquia e Constantinopla competiram pela supremacia sobre as demais congregações, mas no Ocidente a igreja de Roma foi praticamente a única líder desde os primeiros séculos. Os bispos de Roma alcançaram grande preeminência e o papado, em muitas ocasiões, prestou serviços relevantes à igreja e à sociedade, tendo muitos papas sido homens de grande piedade, integridade moral, saber teológico e habilidade administrativa. Dois papas, dada a importância histórica que tiveram, podem ser realçados. Gregório I, ou Gregório Magno (590-604), o primeiro monge a ocupar o trono papal, deixou uma longa lista de feitos, como a supervisão das defesas romanas contra os ataques dos lombardos, a realização de negociações com o imperador bizantino, saneamento das finanças da igreja, além de ter sido estudioso das Escrituras. Ele reformou a liturgia, regularizou as celebrações do calendário cristão e promoveu a música sacra (o "canto gregoriano"). Finalmente, Gregório foi um grande promotor de missões, enviando missionários para vários centros estratégicos do norte e do oeste da Europa e expandindo a área de jurisdição do papado. Inocêncio III (1198-1216), considerado o papa mais poderoso de todos os tempos, concretizou o ideal de uma sociedade plenamente integrada sob a autoridade dos reis e especialmente dos papas. Foi ele o introdutor do título "vigário de Cristo" para o papa, antes somente considerado representante de Pedro.
Na época de Lutero, Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro, vestindo armadura e comandando pessoalmente o seu exército. Seu sucessor Leão X (1513-1521) teria dito ao ser eleito: "Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo". Os dois papas foram os ocupantes do trono de Pedro na época em que Lutero iniciou seu ministério como sacerdote a serviços do catolicismo romano. Antes de Lutero, porém, houve gente que buscou, de alguma forma, reformar alguns aspectos da Igreja. Vamos conhecer os pré-reformadores no próximo fascículo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

17. HETERODOXIAS DO CATOLICISMO

“Olhai, pois, por vós e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue.” (Atos 20.28)

Lembrando-nos de que, segundo o dicionário, ortodoxia é o cumprimento fiel, exato e inabalável de uma doutrina religiosa e a ação de conformidade com essa doutrina, podemos afirmar que a ortodoxia praticada pela Igreja Inicial em Jerusalém era aquela deixada oralmente pelo próprio Cristo e vivida pelos seus seguidores, sob a liderança dos doze apóstolos que a haviam aprendido do próprio Senhor da Igreja. Não havia na época apostólica nenhuma heterodoxia ou heresia, sendo que a primeira que se conhece é apontada pelo livro de Atos, mais tarde chamada pela história de Ebionismo. Saindo do ambiente e da cultura judaica, no entanto, os embates contra a ortodoxia cristã se iniciaram e, ao longo do tempo, após cerca de três séculos, desembocaram em um “outro evangelho”, com características diferentes daquele procedimento inicial. Foi o início do Catolicismo, difícil de se precisar quando começou, mas que já demonstrava alguns indícios de desvios desde os séculos iniciais.
Historicamente, as heterodoxias da Igreja Católica estão diante de nós praticamente desde o século V, pois uma série de coisas não contidas na Bíblia nem praticadas pela Igreja Primitiva foram considerada dogmáticas segundo a sua compreensão católica. Vamos discutir algumas dessas heterodoxias, com base nos textos do Catecismo da Igreja Católica (CIC), que envolveu os papas João Paulo II e Bento XVI para ser elaborado e que é hoje usado como instrumento de ensino dos dogmas e procedimentos da Igreja. Com base na parábola do joio e do trigo, somente Deus pode separar o que é dele daquilo que não é, já que, além do Catolicismo, outros grupos cristãos têm hoje doutrinas e procedimentos questionáveis à luz das Escrituras Sagradas; por isso nos referimos às mudanças como heterodoxias.
Ao estudar a história da Igreja, precisamos deixar de lado certos preconceitos arraigados em nós ao longo do tempo, como o que acontece com a palavra “católico”, por exemplo. Vindo de dois elementos gregos (kata = segundo, conforme + hólos = todo), a palavra católico está presente nos escritos da história da Igreja desde o século II, numa ideia de universalidade que procura abarcar o todo de um movimento que enfrentava, já naqueles dias, muitas discrepâncias quanto a ideias, crenças e práticas. Talvez tenha surgido o termo como oposição a Marcion e sua igreja herética antissemita ligada ao gnosticismo, na qual o cristianismo se desvinculava de suas origens judaicas, numa época quando a Igreja Cristã autêntica não tinha ainda a estrutura de comando que acabou surgindo e levando o nome geral de católica.
Ao consultar o CIC, deparamos algumas vezes com a expressão “ao longo dos séculos, a Igreja tomou consciência de que...”, ou algo semelhante, que normalmente introduz uma das heterodoxias. Muitos foram os acréscimos e as modificações havidas, mas vamos examinar algumas delas.
Missa e sacramento são dois dos aspectos de heterodoxia do Catolicismo. Segundo o CIC, temos as seguintes afirmações: “Toda a vida litúrgica da Igreja gravita em torno do sacrifício eucarístico e dos sacramentos.” “Fieis à doutrina das Sagradas Escrituras, às tradições apostólicas e ao sentimento unânime dos padres, professamos que os sacramentos da nova lei foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo”. “A Igreja afirma que para os crentes os sacramentos são necessários à salvação.”
Dentro da missa, a transubstanciação é um dogma que tem dividido igrejas, mesmo no Protestantismo. Embora muitas denominações tenham voltado para o aspecto simbólico do pão e do vinho (que cremos ter sido o que Cristo deixou para seus discípulos seguirem até que ele volte), há denominações e grupos protestantes que não se desvencilharam totalmente da transubstanciação, embora se refiram a ela com outros nomes e de outras formas. Sobre a transubstanciação, temos as seguintes afirmações:
“A consagração (dos elementos) produz três efeitos maravilhosos: a. as essências do pão e do vinho deixam de existir; b. as aparências do pão e do vinho se mantêm, embora não mais conectados com sua realidade interior; c. as essências dos verdadeiros corpo e sangue de Cristo vêm a existir sob a aparência do pão e do vinho.” Tudo isto acontece e constitui a “eucaristia”, dentro do sacrifício da missa. O sentido é o de que o sacrifício de Cristo é renovado pela Igreja a cada missa rezada.
Outro aspecto que precisamos considerar é o da penitência. Dela, podemos deduzir que a fé católica no sacrifício de Cristo como propiciação pelos nossos pecados diante de Deus não é tão completa como a maioria das igrejas evangélicas crê, pois o pecador precisa complementar a graça da salvação através de penitências que lhe são impostas pelo sacerdote, que ouve a sua confissão de pecados; são somente esses sacerdotes “que recebem da autoridade da Igreja a faculdade de absolver” é que “podem perdoar os pecados em nome de Cristo.” A penitência pode ser aceita na forma de “uma oração, uma oferta em obras de misericórdia, um serviço ao próximo, privações, sacrifícios ou aceitação paciente da sua cruz.”
Como consequência da penitência, a indulgência representa diante de Deus a remissão das penas do pecado, administrada pela Igreja ao retirar do “tesouro das satisfações (méritos) de Cristo e dos santos” aquilo que for necessário para que tal perdão aconteça. Se, porém, alguém morrer não plenamente justificado diante de Deus, passará por um período de purificação no Purgatório, para que seus pecados sejam purgados e essa pessoa esteja em condições de entrar na alegria do céu. Tal período no Purgatório poderá ser diminuído se houver por parte do fiel em vida ou após a sua morte a adesão às indulgências, sacrifícios, contribuições financeiras, peregrinações, atitudes, enfim, que resgatem do “tesouro das satisfações de Cristo e dos santos” a quantidade de méritos necessária para a abreviação da pena.
O Purgatório é explicado da seguinte forma: “Os que morrem na graça e na amizade de Deus, mas não estão completamente purificados, embora tenham garantida sua salvação eterna, passam, após sua morte, por uma purificação, a fim de obter a santidade necessária para entrar na alegria do céu. A Igreja denomina purgatório esta purificação final dos eleitos, que é completamente distinta do castigo dos condenados.” Embora o Catolicismo já o aceitasse anteriormente, o dogma do purgatório foi oficializado nos Concílios de Florença (1439) e de Trento (1545-1563), o primeiro menos de um século antes de Lutero e o outro acontecido por causa das Reformas Protestantes.
O assunto seguinte, a indulgência, tem ligação direta com a Reforma Protestante. O CIC assim a explica: “A indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa (remissão) que o fiel bem-disposto obtém, em condições determinadas, pela intervenção da Igreja que, como dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações (méritos) de Cristo e dos santos”. (...) "A indulgência é parcial ou plenária, conforme liberar parcial ou totalmente da pena devida pelos pecados." (...) Todos os fiéis podem adquirir indulgências (...) para si mesmos ou aplicá-las aos defuntos.
Mariolatria, intercessão de santos, sacramentos, oração pelos mortos e tantas outras coisas poderiam ser aqui abordadas. Joio e trigo: Jesus orientou seus seguidores para que deixassem os dois crescerem sem tentar separá-los. É difícil não julgar, numa época em que tanto joio tem pregado o evangelho, aparentemente até com sucesso. Não nos esqueçamos, porém, de que a conversão a Cristo é individual e obra do Espírito Santo de Deus, pois é ele quem convence o homem do pecado, da justiça e do juízo. Cabe a cada organização cristã desenvolver sua ortodoxia, buscando um cumprimento fiel, exato e inabalável da doutrina religiosa ensinada por Jesus Cristo durante o seu ministério neste mundo, e que foi enfatizada e praticada por seus apóstolos e seguidores. Busquemos cada vez mais viver e divulgar o evangelho apostólico, pois é ele que precisa ser levado a todas as nações até os confins da terra.
O espírito guerreiro dos bárbaros germânicos influenciou o Cristianismo, gerando até o episódio das cruzadas, assunto a ser discutido no próximo segmento.

16 A IGREJA E A HERESIA

“... ainda que nós mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro evangelho além do que vos tenho anunciado, seja anátema.” (Gálatas 1.8)

Antes de discutirmos o problema da heresia em si, vamos a algumas definições. Ortodoxia, segundo o dicionário do Aurélio, é o cumprimento fiel, exato e inconcusso (inabalável) de uma doutrina religiosa; é ainda conformidade com essa doutrina. Num sentido mais extremo, é a intransigência a tudo quanto é novo, a rejeição de novos princípios ou ideias. O antônimo de ortodoxia é heterodoxia, que se define como oposição a ou diferença de algum padrão adquirido, como a Bíblia, por exemplo. Heresia é definida pelo dicionário como doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé (grifo nosso). Nesta multiplicidade atual de visões cristãs, cabe aqui a pergunta: “Qual igreja?”
No seu livro “Heresia”, o autor anglicano Alister McGrath se lembra de hairesis no grego, que significa escolher ou escolha. Portanto, como termo neutro, não pejorativo, na origem, heresia significava apenas um ato de escolha. Aprofundando o significado da palavra, McGrath afirma ainda que heresia é a “crença cristã que, mais por acaso do que por desígnio, acaba por subverter, desestabilizar ou até mesmo destruir o núcleo da fé cristã.” Diz mais ainda o citado autor: “Heresia não significa incredulidade no sentido estrito do termo, mas uma forma de fé que, no final das contas, é considerada subversiva ou destrutiva e, assim, leva indiretamente ao estado de incredulidade.
O cristianismo foi visto inicialmente como seita (ou seja, escolha, heresia) dentro do judaísmo, o qual era considerado como religio licita, (ou seja, religião legal) dentro do império, fato que livrou a Igreja de perseguições iniciais por parte de Roma. Pode-se, portanto, concluir, com base no que já foi afirmado, que o conceito de heresia e seus termos correlatos é amplo, relativo a diferentes grupos cristãos, já que cada um deles tem a sua ortodoxia.
Tendo surgido e crescido inicialmente na cultura judaica, enquanto a Igreja não se sentiu pressionada pela perseguição a sair de Jerusalém e assim levar o evangelho a outras culturas dentro do Império Romano, talvez o problema da heresia não tivesse sido sentido. O  verso de Paulo citado no início foi um alerta aos cristãos da Galácia, um território gentio, e se estende até nós hoje.
O pensamento do mundo moderno com relação à heresia pode ser deduzido da seguinte frase de Will Herbert: “Hoje, as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes; pois o que significa ser um herege, senão ter mente original, ser um homem que pensa por si mesmo e rejeita credos e dogmas?”  E nós, cristãos, será que conhecemos devidamente a heresia para a reconhecermos e a combatermos?
Procurando conhecer mais de perto o assunto, vamos partir de um movimento que foi definitivo no início da Igreja e que reaparece com força no século XXI: o Gnosticismo. Sobre o assunto, assim se expressou W. Walker: “É preciso distinguir entre o fenômeno geral do gnosticismo em si mesmo e as formas definidas e particulares que ele assumiu através da associação com o cristianismo. Nem todo o movimento gnóstico era cristão e o movimento ou tendência religiosa que ele representa existiam independentemente da igreja, ainda que ele não preceda em muito o cristianismo. O que eles têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria essência.” Paulo alertou Timóteo pera que guardasse o depósito da fé que lhe havia sido confiado, evitando as conversas vãs e profanas e “as oposições da falsamente chamada ciência.” Embora o nome ainda não existisse na sua época, com certeza ele se referia ao gnosticismo.   
Partindo de Shelley, Cairns e Walker, três historiadores, vamos definir alguns termos dentro do gnosticismo. Shelley apresenta um esquema de avaliação do movimento que mostra no mundo superior um “Pai Sem Nome” espiritual e bom, que contrasta na parte inferior com o “Mundo Material e Mau”, e entre os dois, o “Pleroma”e o “Kenoma”. Vagando entre eles estão os “Eons” (ou Aeons), ou seja, as emanações ou os mediadores (“História do Cristianismo ao alcance de todos”, Bruce L. Shelley). Pleroma é o mundo original, mundo divino de coisa-espírito, que é denominado a plenitude. Kenoma é o mundo inferior, mundo material, que algumas vezes é chamado de o vazio.
As emanações (ou Eons) são seres com menos espírito e uma quantidade de matéria cada vez maior: Pistis (fé), Sophia (sabedoria), Anthropos (homem) e Demiurgo são exemplos de Eons. O demiurgo tinha espírito suficiente em si, possuindo poder criador e dispondo de elementos para criar o mundo material, que era mau; o demiurgo não podia criar do nada (ex nihilo), mas somente a partir de um caos preexistente. No chamado “gnosticismo cristão”, o Javé do Antigo Testamento era identificado como um demiurgo, demonstrando os gregos total antipatia por ele. Sobre a mesma linha de pensamento, W. Walker acrescenta: “Querendo libertar as almas aprisionadas no mundo material, Sophia rebela-se contra Demiurgo, e o verdadeiro Deus inefável envia aos homens seu filho mais querido, o eon Chirstós (ou Cristo), que desce ao mundo material com o objetivo de transmitir ‘Gnosis’ (conhecimento) às almas para que elas tenham consciência de sua identidade divina e partam para o Pleroma, libertando-se do jugo e da escravidão do Demiurgo.” Para o Gnosticismo, segundo Cairns, “a tarefa de Cristo era ensinar uma gnose ou conhecimento especial que ajudaria o homem a se salvar por um processo intelectual”.
Sabedoria, filosofia, ciência, racionalidade eram conceitos muito caros aos gregos, e houve cristãos que se encantaram com eles no início da história da Igreja, ao ponto de tentarem adequar a filosofia grega ao cristianismo. Alguns até julgavam que, no passado, os filósofos gregos haviam ido buscar seus conceitos éticos no Pentateuco, em Moisés e no Velho Testamento.
Dentro do gnosticismo mais propriamente, o Valentianismo e o Marcionismo foram os movimentos mais difíceis de combater para o cristianismo inicial, a partir de meados do século II. Valentino talvez tenha sido discípulo de Teudas, que foi discípulo de Paulo. Márcion rejeitava o judaísmo e criou um “cânon neotestamentário” próprio, apenas com parte do evangelho de Lucas e as epístolas gerais de Paulo. Na época, a Igreja não dispunha ainda a organização que viria a ser desenvolvida, e os dois líderes se separaram voluntariamente das demais congregações cristãs, criando “igrejas” para si próprios. A Igreja geral pareceu perceber a necessidade de se preocupar com o assunto e seus líderes passaram a refletir sobre a seleção de textos que deveriam ser aceitos como inspirados. Levou praticamente três séculos, mas finalmente chegou-se ao cânon definitivo do Novo Testamento. Como heresias clássicas iniciais, podemos citar:
  • Ebionismo (um modelo judaico para Jesus de Nazaré, segundo McGrath), relatado inicialmente em Atos 15;
  • Docetismo (a humanidade de Jesus de Nazaré), originário de Cerinto;
  • Arianismo (a identidade de Cristo), iniciado por Ário na época de Constantino;
  • Donatismo (a natureza da Igreja), de Donato, no norte da África;
  • Pelagianismo, (a natureza humana e a graça divina), heresia criada por Pelágio.
As heresias iniciais surgiram no período de perseguição da Igreja; heresia e ortodoxia eram na época conceitos importantes apenas dentro das comunidades cristãs, às vezes perseguidas. A partir de Constantino e do Arianismo, heresia e ortodoxia passaram a ser preocupações políticas do império, com importantes implicações legais, já que o Estado começou a se envolver profundamente nas questões teológicas.
Vivendo numa época na qual “as pessoas se vangloriam avidamente de serem hereges, esperando com isso se mostrarem interessantes”, segundo Will Herbert, podemos afirmar que o gnosticismo hoje está em moda. Cabe à Igreja procurar conhecer bem esses assuntos, para que possa estar preparada para ser sal e luz, numa sociedade que admira mais a exceção do que a regra, o heterodoxo e herético do que o ortodoxo.
Sobre as congregações cristãs, precisamos conhecer as heterodoxias que foram modificando a ortodoxia inicial apostólica, desenvolvidas pela Igreja Católica, assunto do próximo fascículo.