20 séculos de Igreja Cristã

20 séculos de Igreja Cristã
do século I ao século XXI

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

32. EXPANSÃO DO CRISTIANISMO NA AMÉRICA DO NORTE

“Então, falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. (Êxodo 20.1-2)


Conforme já se abordou anteriormente, houve uma evolução no conceito de puritanismo a partir da Inglaterra, no que diz respeito à permanência na Igreja Anglicana. As pessoas que ajudaram a compor a população do Mayflower eram separatistas provenientes de um grupo que fugira para Leyden, na Holanda. Não eram somente puritanos, mas vinham como parte de uma congregação já separada da Igreja Anglicana, buscando novas formas de ser igreja. No litoral norte-americano de Massachusetts, uma grande pedra de granito chamada Rocha de Plymouth, com o número 1620 esculpido em sua superfície, marca a proximidade do lugar onde o grupo de europeus – conhecidos como Pais Peregrinos – desembarcou há quase 400 anos. John Robinson, William Brewster e William Bradford foram líderes ligados a esse movimento.
Os puritanos vieram para a América a partir de 1630. Na Inglaterra, Carlos I assumiu a coroa no final da década de 1620, sendo grandemente apoiado no governo e na Igreja por William Laud, nomeado como Arcebispo de Canterbury no começo da década de 1630. Sua política de imposição do anglicanismo e de perseguição aos grupos dissidentes fez com que muitos decidissem fugir do país, entre eles um grande contingente de puritanos. Os puritanos não haviam rompido com a Igreja da Inglaterra, como o grupo dos Peregrinos separatistas havia feito. Eles se imaginavam refazendo a história do êxodo bíblico, pois, tal como os antigos israelitas, eles haviam sido libertados por Deus de opressão e estavam ligados a Ele por um pacto. Como o povo de Israel, eles haviam sido escolhidos por Deus para cumprir um papel especial na história da humanidade: estabelecer uma comunidade cristã nova e pura. A vida era difícil naquele lugar pouco hospitaleiro, mas eles eram livres para adorar como quisessem. O louvor centralizava-se na Bíblia, os cultos da igreja eram simples, o órgão e todos os instrumentos musicais foram proibidos. Os puritanos cantavam salmos a cappella.
Segundo a visão puritana, Deus é Todo-poderoso e Soberano sobre todas as coisas e os seres humanos são pecadores depravados. O Senhor havia escolhido poucas pessoas, “os eleitos”, para a salvação. O resto da humanidade estava condenado à perdição eterna. No entanto, ninguém sabia realmente quem era salvo ou perdido; os puritanos viviam em um constante estado de ansiedade espiritual, buscando os sinais do favor ou da ira de Deus. Para a comunidade puritana, não era só a salvação individual que importava, mas também a saúde e o bem-estar espiritual de todo o grupo, pois era a comunidade que honrava e mantinha a aliança. A comunidade estava disposta a tolerar um certo limite de opinião e crença contrária, mas ela sabia que, se a dissenção não fosse mantida dentro de limites, isso poderia minar internamente a vida comunitária. Foi exatamente o que aconteceu quando dois membros da Colônia da Baía de Massachusetts, Roger Williams e Anne Hutchinson, desafiaram a autoridade religiosa da comunidade puritana.
Na região onde surgiram os Estados Unidos, o desenvolvimento das diferentes igrejas nas treze colônias britânicas não foi uniforme, pois vários povos europeus investiram na colonização, fato que contribuiu para a diversidade de população, sendo necessária uma tolerância mútua de igrejas diferentes, nem sempre conseguida. Começando pela Virgínia em 1607, passando por Massachusetts a partir de 1620 e terminando na Geórgia em 1733, diferentes países europeus e diferentes grupos religiosos foram desafiados a colonizar as treze colônias iniciais. Além dos ingleses, também franceses, holandeses, suecos, alemães e outros povos foram para o Novo Mundo ajudando a colonizar as diferentes regiões, levando consigo a igreja que em geral tinham como oficial no Velho Mundo. Na Pensilvânia, por exemplo, prevaleceu a colonização quacre, tendo William Penn recebido a concessão real para a exploração da terra. Quacres em grande número para lá imigraram, muitos deles fugindo de perseguição religiosa na Inglaterra. A liderança da Pensilvânia buscou implantar na região a liberdade religiosa, acomodando a diversidade populacional inicial da colônia. Apesar disso, grupos quacres que tentaram ir para outras colônias também lá sofreram perseguições.
Outra colônia que implantou liberdade civil e religiosa desde o início foi Rhode Island, que se tornou refúgio para os que eram perseguidos. Começando pelo pioneiro Roger Williams, que sentiu na pele a perseguição religiosa por discordâncias com a igreja anglicana, seus seguidores lutaram pela liberdade e igualdade de condições para todos os que buscassem a colônia. Foi lá que surgiram os batistas nos Estados Unidos.
A colônia puritana sobreviveu, mas, ao longo do tempo, seu fervor religioso diminuiu. Entre as causas da decadência espiritual que se espalhara, o crescimento de juramentos, sono nos sermões, sexo e álcool em excesso – principalmente em tavernas, onde mulheres usavam menos roupas e havia maior licenciosidade – estavam entre as mais importantes.
O fato é que, no decorrer da história, o fervor ético e religioso da primeira geração de puritanos fundadores da Nova Inglaterra não foi igualado por filhos e netos nas gerações seguintes. Assim sendo, o pacto parcial estabelecido ainda a bordo do Mayflower acabou dando lugar ao que se convencionou chamar de halfway covenant, pacto de meio caminho, em meados do século XVII. As mudanças pelas quais passavam o mundo e o cristianismo na Europa começaram a se fazer sentir no Novo Mundo, tendo surgido tendências liberais em Harvard a partir do final do século XVII.
As condições das colônias americanas antes da independência não eram favoráveis ao estabelecimento de uma religião oficial. Durante grande parte do período inicial, muitas colônias tinham suas igrejas oficiais, como o congregacionalismo na Nova Inglaterra e o anglicanismo no Sul, na Virgínia, Geórgia e outras colônias. As regiões centrais caracterizavam-se por uma maior diversidade religiosa, não havendo igrejas estatais em Rhode Island, Pensilvânia, Nova Jérsei e Delaware, com a oposição de batistas e quacres naquelas regiões onde a igreja oficial existia.
A Constituição Americana de 1787, em sua Primeira Emenda, dispôs que “o Congresso não aprovará qualquer lei referente ao estabelecimento da religião ou proibindo o livre exercício da mesma”. Era um novo momento nas relações entre igreja e estado, com o forte apoio de batistas, menonitas, quacres e a maior parte dos metodistas e presbiterianos, buscando proteger a liberdade das igrejas e a consciência individual da interferência do estado. Para isso, contavam com o apoio dos fundadores da república, a maior parte dos quais eram deístas, que queriam proteger o estado do controle clerical.
O racionalismo científico do Século das Luzes, pouco a pouco, se instalou na consciência dos habitantes da Nova Inglaterra, mudando o pensamento e o estilo de vida dos puritanos. A busca pelo bem-estar aos poucos substituiu a reflexão teológica, mudanças que acabaram por desembocar no deísmo, assunto a ser ainda abordado.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

31. PURITANOS NA NOVA INGLATERRA

“Os passos do homem são dirigidos pelo Senhor; o homem, pois, como entenderá o seu caminho?” (Provérbios 20.24)


Conforme já se abordou no fascículo 26, a chegada ao trono inglês de um novo rei, de outra dinastia, vindo da Escócia onde o presbiterianismo surgira, fez com que a esperança por maiores reformas na Igreja anglicana crescesse no meio puritano. James I, dos Stuarts, no entanto, chegou afirmando: "Sem bispo, não há rei". Ele havia convivido com os presbitérios na Escócia e sentira como é difícil para o rei impor seu governo com a ingerência de muitas pessoas. Hampton Court, em 1604, foi uma decepção para os puritanos, pois eles somente conseguiram a autorização real para a impressão de uma nova versão bíblica, conhecida em inglês como “King James Version”. A velha Inglaterra, com sua opressão religiosa, tanto por parte do rei quanto da Igreja oficial, tornava-se cada vez mais difícil para  puritanos e separatistas, que começavam a ansiar por uma Nova Inglaterra.
Iniciando por Robert Browne, que levou alguns separatistas para a Holanda no final do século XVI, o começo do século XVII viu crescer o número de congregações inteiras que buscavam refúgio em um país com mentalidade mais receptiva e pluralista no aspecto religioso. No entanto, esse pluralismo holandês não ajudou na adaptação de algumas comunidades inglesas, que se sentiam estrangeiras naquela terra e temiam que seus filhos se tornassem por demais seculares. Era o caso da congregação de John Robinson, a qual, partindo de Scrooby, na Inglaterra, estabeleceu-se em Leyden, na Holanda. Membros dessa congregação acabaram por compor parte dos 102 passageiros do Mayflower, no final de 1620. O pacto conhecido como Mayflower Compact foi assinado por 41 adultos antes do desembarque no continente americano, documento no qual acordavam construir no Novo Mundo uma igreja pura, não contaminada pelas falhas do Anglicanismo. Numa terra ainda sem governo estabelecido, os puritanos poderiam criar um que refletisse as idéias calvinistas. John Robinson, o líder da congregação na Holanda, havia dito: "Eles sabiam que eram peregrinos". Como a Holanda não tinha sido sua terra prometida, talvez a América pudesse ser.
Esses novos "filhos de Israel", no entanto, encontraram na Nova Inglaterra um ambiente de sofrimento: fome, frio e doença dizimaram a pequena colônia, sendo que metade dos pioneiros não resistiu ao primeiro inverno. Os sobreviventes, contudo, dedicaram-se ao trabalho e conseguiram uma boa colheita no verão seguinte. A celebração do Thanksgiving, o Dia da Ação de Graças, começou naquela ocasião. À cidadezinha fundada numa verde colina deram o nome de New Plymouth.
Desde o início da colonização, a colônia possuía um governador e um conselho – cujos membros eram eleitos ou reeleitos a cada ano por toda a comunidade – regida por leis restritas, notadamente no que se referia a posturas morais. Começando pela baía do Massachusetts, estabeleceu-se então a Nova Inglaterra, que teve John Winthrop como seu primeiro governador. Ainda na viagem, Winthrop havia declarado: "Nós devemos agir nessa empreitada como um só homem, devemos alegrar-nos na companhia dos nossos, divertir-nos juntos, chorar juntos, trabalhar e sofrer juntos, tendo sempre presente no espírito a missão de nossa comunidade, na qual todos devem ser como membros de um mesmo corpo".
Além das características já apontadas anteriormente, no puritanismo americano, Igreja e Estado trabalhavam juntos buscando o consenso. Todas as decisões deviam ser unânimes, fato que provocava debates intermináveis. Mas, uma vez obtido o consenso, os puritanos não contestavam a decisão tomada, convencidos de que "Deus esclarecera suficientemente os pastores e os magistrados de seu próprio povo para que estivessem preparados para governar com base na certeza e na verdade". Eram passíveis da pena capital os blasfemadores, os feiticeiros e feiticeiras, os adivinhadores, quem cometesse homicídio ou bestialidade, bem como os pederastas, os adúlteros, os ladrões, aqueles que davam falso testemunho e os conspiradores. O repouso do sabbat (como eles chamavam o domingo) deveria ser rigorosamente respeitado e voltado às atividades espirituais. "Não podemos obrigar ninguém a ser crente - afirmavam os teólogos puritanos - tanto quanto não podemos forçar uma pessoa livre a renunciar a uma convicção". Apesar da separação relativa entre Igreja e Estado e o cuidado com a liberdade de consciência, os puritanos se mostravam intolerantes àqueles que não pensavam como eles, por medo de um caos social.
Entre 1630 e 1640, em ondas sucessivas, cerca de 20 mil ingleses desembarcaram no Massachusetts. Do Maine ao Connecticut, comunidades foram aparecendo, dedicando-se à caça, à pesca e à agricultura. Indústrias começaram a crescer, especialmente a da pesca. Estaleiros foram criados; pequenas cidades se desenvolveram, povoados costeiros, como Salem e Charlestown, se transformaram em portos, nos quais negociantes comerciavam com a Europa e as ilhas do Caribe. Boston, centro do governo de Massachusetts, mostrava prosperidade em suas múltiplas atividades.
Educação sempre foi uma área muito importante na formação das novas gerações puritanas do Novo Mundo. Em 1636, foi fundada perto de Boston a Universidade Harvard. Três anos depois, uma tipografia se estabelecia na região. O estilo de vida da Nova Inglaterra não somente se impôs aos recém-chegados, mas também ganhou outras regiões onde se disseminavam os cristãos.
Novas colônias se estabeleceram e cada uma delas se esforçou para preservar sua independência, no plano religioso ou político. Assim, a de Rhode Island – formada pelas cidades de Providence, Portsmouth, Newport e Warwick – possuía uma autorização da coroa inglesa que a tornava uma pequena república independente. Os colonos de Connecticut, em 1639, redigiram as Ordens Fundamentais do Connecticut, a primeira constituição escrita na América e no mundo ocidental.
“Nós, cujos nomes se seguem, leais súditos de nosso soberano senhor Jaime, pela graça de Deus, rei da Grã-Bretanha, da França e da Irlanda, defensor da fé, tendo realizado, para a glória de Deus, a difusão da fé cristã e a honra de nosso rei e de nosso país, uma viagem para estabelecer a primeira colônia na parte norte da Virgínia, pelo presente, realizamos solene e mutuamente, diante de Deus e de cada um de nós, uma aliança e a constituição de um corpo político civil para nos garantir uma ordem e uma proteção maiores, e a busca dos objetivos precedentemente citados...” Neste trecho do Mayflower Compact assinado pelos pioneiros, notamos a obediência puritana ao Rei e à Igreja Anglicana, da qual faziam parte, embora ela os perseguisse. Apesar da sujeição à lei britânica, no entanto, os puritanos e demais imigrantes encontraram no Novo Mundo condições para a criação de uma nova realidade, permitindo grande expansão do protestantismo, muito maior do que a experimentada no Velho Continente, assunto a ser abordado no próximo texto.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

30. DENOMINACIONISMO E A UNIDADE DA IGREJA

“Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer”. (1 Coríntios 1:10)


Unidade da Igreja tem sido um tema em constante debate na história, desde que o assunto preocupou os pais apostólicos nos primeiros séculos. Como já foi visto, ao sair de Jerusalém, o Cristianismo entrou em contato mais direto com o mundo do Império Romano, com suas religiões, deuses e deusas, filosofias, e tudo isso passou a influenciar as congregações locais. Durante muitos séculos, o desenvolvimento do catolicismo, com sua hierarquia centralizada no papado em Roma manteve certa unidade com a força do poder político aliado ao eclesiástico, até que a Igreja Ortodoxa Grega oficialmente se separasse de Roma no século XI, em 1054. No entanto, com o advento da Reforma Protestante, quase cinco séculos após, a unidade do Cristianismo, mantida precariamente até então, estava comprometida.
Segundo afirma Allister McGrath, na opinião dos reformadores, a igreja católica medieval continuava a ser uma igreja cristã, mas poderia perder a visão de sua identidade e vocação pela corrupção, que tornava uma reforma inevitável. Se não fosse possível uma mudança interna, a separação e a formação de uma igreja reformada fora da esfera de influência do catolicismo seria necessária.
A partir do século XVI, a manutenção de uma única igreja em termos institucionais tornou-se inviável, começando os cristãos a conviver com a ideia de unidade na diversidade. A unidade não é necessariamente sociológica ou organizacional, mas teológica. Hans Kung, teólogo suíço ligado à Igreja Católica, afirma: "A unidade da igreja é um fator espiritual e é somente um e o mesmo Deus que reúne aqueles que estão dispersos, vindos de todos os lugares e de todas as épocas, transformando-os em um só povo de Deus. É somente um e o mesmo Cristo que, por meio de sua palavra e do Espírito, une a todos nos mesmos laços de comunhão em um só corpo de Cristo... A igreja é uma só e portanto deve ser única." Diz ainda: "A unidade da igreja pressupõe uma multiplicidade de igrejas. As diversas igrejas existentes não precisam negar suas origens, seu contexto, sua língua, sua história, seus costumes e tradições, seu modo de vida e pensamento, sua estrutura específica, tudo isso apresentara uma diferença fundamental e ninguém tem o direito de lhes tirar isso. A mesma coisa não serve para todos, em todos os lugares, em todas as épocas”.
Partindo-se da dicotomia, a partir de então, de Igreja geral (católica na acepção inicial da palavra) e Igreja local, o povo cristão tem procurado entender que, apesar de tantas diferenças naquilo que é acidental, enquanto as congregações locais mantiverem unidade naquilo que for essencial ao cristianismo, a Igreja continuará aguardando a volta de Cristo para que então “o mesmo Deus” reúna “aqueles que estão dispersos, vindos de todos os lugares e de todas as épocas”. Passou então o Protestantismo a conviver com a ideia de denominacionismo. Começando com os reformadores iniciais, aos poucos quatro linhas reformatórias foram sendo traçadas, segundo a interpretação das Escrituras feita por cada liderança dirigente, criando doutrinas divergentes em vários aspectos, embora baseando-se todas das mesmas Escrituras.
A primeira geração de reformadores acreditava que a ruptura havida na Igreja Cristã seria temporária e que protestantes e católicos entrariam em acordo, para que a Igreja voltasse a se unir, se o Catolicismo aceitasse reformas mais profundas. O Concílio de Trento, porém, frustrou a esperança, ao mudar muito pouca coisa e reafirmar dogmas inaceitáveis pelos reformados.
A estruturação denominacional passou a ser uma tarefa da segunda geração de Protestantes. Para essa geração, é válido lembrar o que disse Hugh Latimer, um bispo anglicano do século XVI: “Todos queriam o bem, mas certamente eles não queriam a mesma coisa”. Havia uma vontade de acertar – o bem mencionado – por parte de todas as lideranças de reformadores, mas o resultado conseguido não foi uniforme, pois as mudanças seguiram entendimentos teológicos diferenciados. A partir do século XVI, as denominações começaram a se estruturar, embora a palavra denominação para descrever um grupo religioso somente passasse a ser utilizada por volta de 1740, durante o início do reavivamento evangélico liderado por John Wesley e George Whitefield.
Um dos fatores que diferenciaram uma denominação de outra desde o início foi a forma de governo eclesiástico. Três tipos tradicionais de organização da igreja protestante passaram a ser usados: o episcopal, o presbiteriano e o congregacional. Desenvolvidos no contexto europeu, cada tipo foi posteriormente transplantado para os contextos norte-americano, africano e asiático, subsistindo até hoje, muitas vezes de forma mesclada. O modelo episcopal, característica de luteranos e anglicanos, é usado principalmente por denominações que consideram que a reforma se aplica mais à doutrina e à liturgia e menos às estruturas da igreja. O modelo presbiteriano nasceu com Calvino e sua estrutura quádrupla, baseada no Novo Testamento, com a liderança de pastores, mestres, anciãos e diáconos. Influente na América do Norte e na Coreia da época moderna, o modelo tornou-se menos marcante no protestantismo europeu. O modelo congregacional não enfatiza credos e confissões de fé específicas, acreditando que essa exigência mina a independência da congregação local. Além da Igreja Congregacional, também os Batistas adotam o modelo.
O surgimento do Pentecostalismo no século XX reabriu a questão das estruturas protestantes. Para muitos pentecostais, as estruturas são um impedimento para o movimento e ação do Espírito Santo. Creem eles que estruturas excessivamente rígidas podem atrapalhar ou até mesmo sufocar a obra do Espírito, da qual, em última instância, a adoração e a missão da Igreja dependem. Apesar disso, surgiram também como o tempo as denominações pentecostais.
Sobre a fase atual da Igreja, na qual o catolicismo não é mais visto pelo protestantismo com tantas restrições e quando outros inimigos da fé têm surgido, afirma Allister McGrath: "Agora, os protestantes, tanto no Ocidente como no mundo em desenvolvimento, acham mais fácil colaborar uns com os outros do que achavam antes, à medida que se unem para comunhão e apoio mútuo, em face de ameaças reais. Uma vez que não parece provável que o secularismo nem o Islamismo desapareçam em um futuro próximo, pode-se esperar que o protestantismo deixe de lado alguns de seus debates e diferenças históricos em favor da sobrevivência mútua." Mais do que nunca, neste século XXI, é preciso muito amor e respeito ao irmão que crê no mesmo Deus, mas que o adora e pratica uma forma de igreja diferenciada da tradicional.
Nascida a ideia no continente europeu, o denominacionismo realmente encontraria espaço e condições para expansão no Novo Mundo, assunto do próximo segmento.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

29. AMSTERDAM E OS BATISTAS

“... ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado. ” (Marcos 16.15-16)


Ano de 1609: um grupo de pessoas, ingleses dissidentes da Igreja Anglicana perseguidos em sua terra por causa de suas convicções religiosas e refugiados em Amsterdam, na Holanda, reuniram-se em uma padaria para iniciar uma nova igreja, pois, com base nas Escrituras, acreditavam que uma congregação local deveria ser formada por crentes convertidos e então batizados. Como haviam todos sido batizados quando crianças em suas paróquias anglicanas, passaram novamente pelo ato do batismo, primeiro o líder espiritual, John Smyth, depois toda a congregação. Com o arrependimento de John Smyth e da maior parte da congregação logo depois, um grupo de dez pessoas, sob a liderança de Thomas Helwys, se desligou do grupo maior, mantendo a união do embrião batista inglês em solo holandês, até que puderam voltar à Inglaterra para que lá ele fosse transplantado.
Na sua volta para Londres, Thomas Helwys e sua congregação foram residir em Spitalfields, nas cercanias de Londres, onde foi organizada a 1ª Igreja Batista Inglesa, em 1612. Com o passar do tempo, a igreja organizou outras congregações em Londres e arredores. Por volta de 1624, havia na cidade 5 congregações batistas; já em 1647, o número havia crescido para 47. Na época, Helwys escreveu “Uma Declaração de Fé do Povo Inglês”, a primeira confissão de fé batista em inglês, além de outro livro, “Uma Curta Declaração do Mistério da Iniquidade”. Entre outras coisas, Helwys afirma no livro: “Porque a religião dos homens com Deus é entre Deus e eles mesmos. O rei não deve responder por isso. Nem deve o rei ser juiz entre Deus e o homem”. Num país onde o Anglicanismo era religião oficial e o rei o cabeça da Igreja, Helwys foi preso e dele não se teve mais notícia. John Murton tornou-se pastor da congregação depois da prisão de Helwys, tendo também enfrentado prisão.
As Igrejas decorrentes do trabalho inicial de Helwys e Murton foram chamadas de “Batistas Gerais”, por sua influência arminiana, pois pregavam uma mensagem de salvação geral, universal, ou “de livre arbítrio”, teologia desenvolvida por Jacobus Arminius (1560-1609).
Assim diz o historiador Cairns: “O grupo mais forte de batistas calvinistas ou particulares originou-se de um cisma da congregação de Henry Jacob em Londres, entre 1633 e 1638. Eles defendiam o batismo dos crentes por imersão e uma teologia calvinista que enfatizava a expiação limitada”. Calvino entendia que Deus havia escolhido aqueles a quem iria salvar; afirmava ele que Jesus Cristo morreu para tornar certa a salvação dos eleitos.
O batismo é realmente a marca inicial batista, presente inclusive no nome da denominação, porém a preocupação inicial de Smyth e seus seguidores não foi quanto à imersão, mas quanto ao público alvo. A forma de batismo na época foi a aspersão, mantida por Helwys inicialmente na Inglaterra entre os Batistas Gerais.
O batismo por imersão foi resgatado pelos Batistas Particulares, através de Robert Blount, um membro da congregação de Jessey, após uma viagem feita à Holanda para pesquisar junto a um grupo menonita aquela forma de batismo por eles praticada. Em 1642, Blount foi batizado e, retornando à Inglaterra, batizou Samuel Blacklock. Esses dois batistas, então, batizaram os outros 53 membros da congregação.O nome “Batista” surgiu somente em meados do século XVII. 
A música, inicialmente ausente dos cultos batistas, foi introduzida pouco depois por Benjamin Keach, em Horsleydown, Londres. O cântico congregacional era utilizado inicialmente apenas após a Ceia do Senhor, com oposição de parte da congregação. Entre os princípios defendidos pelos batistas, destacam-se, entre outros, a autoridade de Cristo sobre toda a esfera da vida, a Bíblia como única regra de fé e prática, cada ser humano com competência e responsabilidade perante Deus quanto às decisões e questões morais e religiosas, a salvação como dádiva de Deus através de Jesus Cristo, cada cristão um sacerdote diante de Deus, batismo e Ceia do Senhor como símbolos constituindo-se nas duas ordenanças da igreja.
Os batistas começaram a ir para as colônias iniciais dos Estados Unidos após o Mayflower, que chegou à América em 1620. Um ministro anglicano de nome Roger Williams foi um dos imigrantes, um homem inconformado com os rumos que a igreja anglicana a que pertencia ia tomando. Após desencontros nos anos iniciais na região de Plymouth, Williams partiu para uma região ainda inexplorada, no território indígena, em meados da década de 1630, onde estabeleceu uma povoação, à qual chamou de Providence. Anos após o estabelecimento de Providence, um grupo de cidadãos decidiu que deveriam iniciar ali uma igreja. Cerca de uma dúzia de pessoas foi batizada, entre elas Roger Williams, tornando-se os membros fundadores da 1ª Igreja Batista de Providence, a primeira na América. Roger Williams foi seu primeiro pastor. Após Providence, John Clarke, em 1644, criou a segunda igreja em Newport, na mesma colônia que viria a se chamar Rhode Island.
Com o surgimento do trabalho batista em solo americano em Rhode Island, aos poucos foram surgindo igrejas batistas em todas as treze colônias na ocupação inicial dos Estados Unidos. Com o crescimento do país, os batistas muito se desenvolveram, em todos os estados criados, vindo a se constituir no maior grupo cristão dos Estados Unidos.
Foi a Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos que nomeou os missionários pioneiros para o Brasil. O final da Guerra da Secessão dos Estados Unidos motivou a organização da 1ª igreja batista em solo brasileiro, em Santa Bárbara, Estado de São Paulo, em 10/09/1871 sob a liderança do pastor Richard Ratcliff, seguida de outra congregação. Das duas igrejas saíram as cartas demissórias dos cinco membros fundadores da 1ª Igreja de Salvador, na Bahia, em 15/10/1882: os casais Bagby e Taylor e o ex-padre Teixeira de Albuquerque.  A imigração de Santa Bárbara serviu de via, preparando o caminho, para que a “Via da Missão” efetivamente iniciasse a pregação do evangelho para os brasileiros, conforme a visão batista.
A Convenção Batista Brasileira é o órgão máximo da denominação no Brasil, sendo a maior convenção da denominação na América Latina, ao representar cerca de 7.000 igrejas, 4.000 missões e 1.350.000 fiéis no ano de 2012.
Em 1905, realizou-se em Londres um congresso, com cerca de 2.500 delegados das Ilhas Britânicas e 750 de aproximadamente vinte e dois países do mundo, organizando a Aliança Batista Mundial. Cerca de 157.000 grupos diferentes de batistas fazem parte da Aliança, espalhados em mais de 200 países, representando mais de 37 milhões de membros de igrejas em todo o mundo.
Presbiterianos, batistas, luteranos, anglicanos e outros formaram o que se convencionou chamar de denominações. Denominacionalismo é o assunto do próximo segmento.

28. A ESCÓCIA E O PRESBITERIANISMO

“Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. ” (1 Coríntios 12.4)

Eduardo VI, o filho varão tão ansiado por seu pai Henrique VIII como sucessor no trono, reinou na Inglaterra de 1547 a 1553: tinha 15 anos ao morrer. Antes da morte, o rei-adolescente deixara testamento para que fosse sucedido por sua prima Jane Grey, por receio de que a reforma da Igreja Anglicana fosse por água abaixo. Sobre Jane Grey e seu destino, o “Livro dos Mártires” de John Foxe afirma: “Seu reinado durou somente cinco dias, porque Maria, conseguindo a coroa por meio de falsas promessas, empreendeu rapidamente a execução de suas expressas intenções de extirpar e queimar a cada protestante. Foi coroada em Westminster da maneira usual, e sua ascensão foi o sinal para o início da sangrenta perseguição que teve lugar". Maria Tudor, que a sucedeu, passou para a história com o apelido de “Sanguinária” (Blood Mary), pois em seu reinado, cerca de 300 protestantes foram executados e 800 fugiram para o continente europeu. Entre os 800 que fugiram, havia um homem chamado John Knox.
Quem foi John Knox? Nascido nas Ilhas Britânicas, talvez na Escócia, com dados biográficos pouco conhecidos, Knox foi ordenado sacerdote em 1540, tendo mais tarde abandonado o catolicismo pelo protestantismo. Foi escravo em navios na França por cerca de ano e meio, sendo libertado e tendo ido para a Inglaterra durante o curto reinado de Eduardo VI. Com a subida ao trono de Maria e a perseguição religiosa acontecida, fugiu para a França em 1554, indo posteriormente para Genebra. Discípulo de Calvino, ele voltou a seu país natal entre 1559 e 1560, numa época quando os calvinistas assumiram o controle de Edimburgo. Knox desenvolveu artigos de fé que foram aceitos pelo parlamento na Escócia, abolindo-se assim o Catolicismo Romano. Em 1560, reuniu-se a primeira assembleia geral da Igreja Presbiteriana escocesa, que elaborou o Livro de Disciplina, o qual foi inicialmente rejeitado pelo Parlamento. Apesar das dificuldades, John Knox reuniu condições para implantar, com apoio político, um novo modelo de Igreja calvinista, que acabou por se constituir no Presbiterianismo.
Com a morte de Knox, outro ex-exilado em Genebra chamado Andrew Melville (1545-1622) deu sequência ao seu trabalho, tornando-se o principal defensor do sistema presbiteriano e de uma igreja independente do estado. Nos reinados seguintes, continuaram as imposições do anglicanismo e as perseguições aos presbiterianos e, finalmente em 1689, o presbiterianismo foi estabelecido definitivamente na Escócia. Em 1970, a Igreja Presbiteriana da Escócia tinha mais de  um milhão de membros. Na Inglaterra, a Igreja Presbiteriana foi criada em 1876 e contava com 60 mil membros em 1970. Na Irlanda, com um presbitério inicial fundado em Ulster em 1642, após restrições políticas, econômicas e religiosas impostas pelo governo inglês, em 1970, a Igreja Presbiteriana da Irlanda tinha cerca de 140 mil membros. A partir de 1715, os “escoceses-irlandeses” começaram a sua grande mudança para os Estados Unidos. 
Para o movimento presbiteriano em geral, a Assembléia de Westminster é de suma importância, já que foi realizada na Inglaterra em um período histórico no qual o presbiterianismo prevalecia, com condições de ser implantado em todo o país, fato que acabou não se efetivando. Durante muitos anos, os puritanos vinham insistindo para que a Igreja da Inglaterra tivesse uma forma de governo, doutrinas e culto mais puros. Foi então convocada a Assembleia, reunida na Abadia de Westminster, em Londres, a partir de 1643, com a presença de 121 teólogos, ministros da Igreja da Inglaterra (quase todos calvinistas), além de membros da Casa dos Comuns e da Casa dos Lordes. Quanto à forma de governo, a maioria era a favor do presbiterianismo, havendo ainda um grupo desejando a forma congregacional e alguns a episcopal. Durante cinco anos e meio, houve mais de mil reuniões do plenário e centenas de reuniões de comissões e subcomissões.
De acordo com Alderi Souza de Matos, “a Assembléia de Westminster caracterizou-se não somente pela erudição teológica, mas por uma profunda espiritualidade; gastava-se muito tempo em oração e tudo era feito em um espírito de reverência”. Foram elaborados pela Assembleia os seguintes “Padrões Presbiterianos”:
Diretório do Culto Público, que substituiu o Livro de Oração Comum, além do Saltério, versão métrica dos Salmos para uso no culto
Forma presbiteriana de governo eclesiástico, em lugar da episcopal com bispos e arcebispos
Confissão de Fé
Catecismo Maior e Breve Catecismo
Na Escócia, a Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana adotou os Padrões de Westminster logo que foram aprovados, deixando de lado os seus próprios documentos de doutrina, liturgia e governo que vinham da época de John Knox. Da Escócia, esses padrões foram levados para outras partes do mundo.
Nos Estados Unidos, o calvinismo chegou com os puritanos ingleses que se radicaram em Massachusetts no início do século XVII. Na Nova Inglaterra, porém, houve a opção pelo governo congregacional da igreja, não pelo sistema presbiteriano. Outros calvinistas de origem holandesa, francesa e alemã também imigraram para a América, porém foram os escoceses-irlandeses os principais responsáveis pela introdução do presbiterianismo naquele país. Durante o século XVIII, cerca de 300 mil cruzaram o Atlântico, estabelecendo-se principalmente em Nova Jersey, Pensilvânia, Maryland, Virgínia e nas Carolinas. No oeste da Pensilvânia, foi fundada Pittsburgh, a cidade mais presbiteriana dos Estados Unidos. Ashbel G. Simonton, o primeiro missionário presbiteriano no Brasil, era descendente desses escoceses-irlandeses da Pensilvânia.
Os presbiterianos participaram ativamente da vida nos Estados Unidos, estando presentes em muitos episódios históricos, como a guerra da independência. Em 1800, a Igreja Presbiteriana contava com 180 pastores, 450 igrejas e cerca de 20 mil membros. Divisões aconteceram ao longo da história, incluindo-se aquela que também ocorreu em outras denominações por causa da escravidão, causa que separou o Norte do Sul. Tanto a Igreja Presbiteriana do Norte quanto a do Sul enviaram muitos missionários a todo o mundo, inclusive ao Brasil.
Quanto às doutrinas, os presbiterianos tradicionalmente mantêm dois sacramentos: o batismo e a Ceia do Senhor (ou Comunhão). No batismo, tanto de adultos quanto de crianças, usa-se a aspersão ou a afusão; entendem que crianças devam ser batizadas, tal como se circuncidavam crianças no Velho Testamento para mostrar que eram parte da comunidade judaica. Na Ceia do Senhor, creem que Cristo está presente no pão e no vinho através do Espírito Santo.
Presbiterianismo é um dos ramos do Calvinismo, uma das quatro alas iniciais da Reforma Protestante. Os batistas surgiram cerca de meio século depois, também como decorrência da uma das alas, assunto a ser abordado no próximo fascículo.